domingo, 16 de dezembro de 2007

Maytréia 8: Caminho pelas Vias Estreitas


Caminho pelas vias estreitas, tocando levemente algumas lápides com as pontas dos dedos. Quando criança, vinha ao cemitério conversar com minha mãe — me sentava defronte à sua lápide e tagarelava as bobagens que aconteciam comigo na escola. Após minha iniciação, a primeira coisa que fiz foi vir ao cemitério, visitar a lápide de mamãe.

A coisa que vi se decompondo no mundo astral me fez vomitar meu almoço. E eu passara vinte e dois anos fazendo confissões àquilo.

Venho até aqui hoje por causa de meu melhor amigo. Não, ele não esticou as pernas. Ele está sentado defronte ao túmulo de sua esposa, tagarelando as coisas tenebrosas que passam por sua cabeça desde a morte dela. Sinto que ele quer se unir a ela. O tipo de sensação que atravessa a Maya e me acerta no fundo dos olhos, lá, onde vejo as coisas de verdade.

— Olá, Carlos.

Um zumbi. Se este fosse um filme Z, eu estaria procurando uma pá para acertar sua cabeça. Mas não é um filme Z, e não tem graça. Eu o vejo como um zumbi porque meus sentidos iniciáticos o estão percebendo no plano etérico, onde capto a vitalidade das pessoas, e vejo que ele está morrendo aos poucos.

— Eu estava falando com Estela... queria muito que me ouvisse... acha que ela me ouve...?

Pobre infeliz. Gostaria de dizer que nesta altura ela esta presa numa espécie de delirante mundo particular, onde os dois continuam fumando maconha e trepando todas as madrugadas após seus shows de rock. Que ela não vê diferença entre este delírio e o mundo “real”, e que quando este sonho bom acabar, ela volta ao mundo, para viver de novo, seja que merda for.

Mas acho que isso não vai consolá-lo. Como não me consolou ver o maldito cadáver etérico-astral da minha mãe, babando fragmentos de pensamentos entrecortados, ansiosa pela visita que esticava um pouco suas sensações de existência.

Caralho, se eu fosse Neo, mandava o Morfeu enfiar aquela porra de pílula vermelha no rabo.

— Sabe... você sempre dizia... não é? ... Que... a gente... hã?

Ele está quase tão morto quanto ela. Me arrependo do monte de besteiras que falava para ele nos meus tempos de Filosofista (malditos sejam os putos que me abriram estas portas de pesadelos!).

— Carlos, eu... claro, acho que sim...

— Sim o quê...?

— Acho que está tudo bem... você só não pode... sabe, estar com ela, digo, agora, mas está tudo bem.

Por baixo de toda esta merda de dor, abandono e mágoa, há um mar de tranqüilidade e blá, blá, blá. Uma pena que a maioria fique boiando no mar de merda.

— Não... não é o... como é...

— Carlos, você precisa parar com esta merda! A porra dos remédios, o pó, a bebida... você está se matando, seu panaca estúpido!

O idiota começa a chorar. E eu também. Porque ele não chora por si mesmo — chora por mim. Chora por minha imensa crosta de ignorância que me torna incapaz de compreender sua dor. Quando todas as minhas convicções caíram por terra ele esteve lá, me ajudando. Mais meu irmão que qualquer dos babacas que vestiam mantos brancos para entoar mantras comigo nas manhãs de sábado.

Cacete, amo demais esse pobre diabo para perdê-lo para seu pesar.

— Você... nem falava palavrão... o que é... que aconteceu com a gente?

As lágrimas escorrem pelo seu rosto magro, e eu estou me abaixando para abraçá-lo quando vejo com o canto dos olhos. É seu espectro.

O fantasma estúpido e surumbático de sua esposa. Ela está olhando para mim, como se pudesse me ver (quando você os vê, eles o vêem também, dizia o mestre), mas não tem aquele olhar parado e idiota. Ela está esperando algo.

— Olá, André. Estive esperando você.

Me agarro ao Carlos como uma criança assustada. Eles nunca falam assim. Eles nunca tomam a iniciativa numa conversa. E, meu Deus, eles nunca parecem tão reais!

— Desculpe, André. Não se assuste. Sei o que estava esperando, e lamento por sua desagradável experiência. Agora me ouça com atenção, porque eu o esperei por muito tempo, e minhas forças estão no final.

“Você é um tolo. E como todos os tolos, é um homem bom. Eu te amo, e o Carlos te ama também. Sabe o que ele me fala toda semana? Me fala que teme por você, mas que é só um idiota viciado que não consegue ajudar nem a si mesmo. Fala que você não tem mais metas, que é um cínico. Ele sente minha falta, é claro, mas também porque eu sabia como falar com você.”

“Você não sabe de tudo. Na verdade, não passa de um garoto assustado que fugiu da escola porque não conseguiu entender uma equação. Pare de olhar as coisas como acha que elas deveriam ser... olhe-as como elas são. Eu estive aqui... nós estivemos aqui, todo este tempo de pranto, apenas por você.”

Ela queria... sinto que ela queria falar mais, mas precisou partir. E era como se eu tivesse sido iniciado agora, e não há seis anos. Ainda estou abraçado a Carlos. Eu limpei sua corrente sangüínea de elementos nocivos umas vinte vezes, mas ele sempre voltava a se drogar. Porque eu não fazia a mágica de verdade.

— Sabe, Carlos, eu realmente acho que ela te ouve. E lamento que não tenha feito a mesma coisa. Vamos embora desse lugar... é hora de recomeçarmos.

Ele me olha como um incrédulo... mas um incrédulo feliz, um sujeito que acertou na loto. E se levanta sorrindo, mas não antes de depositar um beijo carinhoso na lápide de sua mulher.

Obrigado, Estela. Por baixo de toda a tristeza, dor e agonia há um mar de tranqüilidade, o lugar onde os sonhos nascem. Obrigado por me mostrar que a maioria de nós precisa de ajuda para nadar até ele.

Este fascinante mar de mistério que nos conduz a nós mesmos.


CAMINHO PELAS VIAS ESTREITAS foi escrito por Renato Simões

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