Lá estavam eles há algumas horas, bebendo e conversando, um cortejo enorme de garrafas vazias acompanhando tudo. Os outros boêmios olhavam com inveja toda aquela capacidade de beber indefinidamente e manter ainda assim um dialeto de português inteligível e bem articulado. Depois de esvaziar seu uísque à cowboy ("bebida fermentada é pra viado, e gelo nas destiladas também"), o Paladino disse:
"Mas no fim Sathanael estava com inveja do Nume-Filho, vocês sabem, a Segunda Pessoa da Trindade, e não o protagonista dos evangelhos. Devo dizer que sua elevação acima de toda Criação deixou o primeiro e mais antigo dos anjos muito irascível... ao ponto de reunir a terça parte das hostes e se rebelar."
"Porra, Lucas, você só está parafraseando Milton", falou o Visionário, colocando uma "mini-saia" vazia de cerveja preta na mesa. "Acha que somos tão ignorantes que nunca lemos Milton?"
"Foi só uma tentativa... você sabe, não é bem o que se diz, mas como se diz. Retórica é tudo", retrucou o Paladino. O Guardião sorri.
"O fato", insiste o Visionário (e levanta a mão para chamar o garção, pedindo outra garrafa), "é que não precisaria haver mais rebeldes. Primeiro Sathanael, em seguida Lúcifer e Samael, e depois Samiaza com todo o restante da trupe, atrás de turismo sexual e diversão barata. Se Deus viu que os anjos estavam começando a dar trabalho, era melhor ‘descriar’ alguns deles para desencorajar novas rebeliões."
"Acha que ir pro inferno não é ruim o bastante?", pergunta o Guardião, não muito certo de ter dado uma talagada na sua própria bebida.
"Acho que é mais inteligente destruir as ovelhas negras que as acumular todas em um só lugar, onde ficam inventando merda."
"Você fica vulgar quando bebe", observa o Paladino (que examina sua bebida, que parece repentinamente ter diminuído bastante).
"Está tergiversando... (um arroto). O fato é... que horas são?"
"São 02:05" responde solicitamente o garção, colocando mais uma garrafa sobre a mesa.
"Obrigado, ‘faz-me-rir’."
"Mas, acho que, muito mais importante que o fato de Deus não ter destruído os rebeldes é... por que eles se rebelaram?", diz o Guardião, aproveitando a pausa do amigo (que além de vulgar fica esquecido quando bebe).
"Sathanael não era a favor da Criação, Lúcifer era louco, Samael detestava o homem e Samiaza e nossos pais fizeram tudo por tesão", resmunga o Visionário, satisfeito em ver um copo cheio à sua frente.
"Gostaria de poder gravá-lo... para mostrar a você sóbrio como você fica... o médico provavelmente morreria de vergonha do monstro."
"Não é este o meu ponto", corta rapidamente o Guardião, vendo o Visionário surrupiar o copo que encheu para beber — "o ponto é... eles são anjos, não é?"
"Você está bêbado, Marcos" — acrescenta o Visionário com um sorriso empolgado.
"A primeira coisa que um bêbado faz é dizer que os outros estão bêbados" — diz o Paladino, fazendo cara de nojo depois de tomar um generoso gole da cerveja do Guardião — "Droga, Marcos, você está tomando o meu uísque!"
"Desculpa cara, mas perdi o paladar há meia hora. Como eu estava dizendo, uma coisa divertida sobre anjos e demônios é que eles não mudam..."
"Não era isso que você estava dizendo."
"Quieto Matheus, eu quero ver onde isso vai dar" — diz o Paladino ao Visionário, inclinando-se para frente na cadeira.
"… não mudam porque não podem. Não têm livre arbítrio."
"Estou vendo onde isso vai dar..."
"Como caras que não têm domínio da própria vida podem se rebelar contra alguém?"
"Marcos, você está dizendo que Deus não destruiu os rebeldes porque queria que eles se rebelassem?" — fala o Paladino não muito convicto de sua conclusão — "Mas o que ele ganharia com isso?"
"Lucas... Luquinha... não parece óbvio para você? (sorriso de perspicácia se estampando lentamente) Nós estamos aqui, não estamos?"
Todos parecem pesar as palavras por alguns minutos, quando o Paladino muito sério (e se servindo de uma dose dupla de uísque) volta a falar:
"Matheus tem razão... você está bêbado."
O sorriso do Guardião se apaga numa careta de tédio, e o Visionário gargalha tão intensamente que derruba seu copo. Mais uma rodada é pedida: mais cerveja para Matheus, e Martini para Lucas.
Por insistência dos amigos, Marcos bebe água de côco.
BATE-PAPO DE BOTECO foi escrito por Renato Simões
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