quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Rebelião 23: Um Conto de Desespero


A cerimônia já havia terminado. Os corpos de animais sacrificados, o sangue espalhado por todo o chão e as velas negras acesas pelos cantos do recinto serviam de testemunha do fato. Você acorda e não acredita muito no que vê, sua descrença em rituais e coisas do tipo faz com que sua mente rejeite tudo isso. Você percebe que há algo estranho dentro de si... não, não... é mais precisamente na sua mente. Isso! É na sua mente. Sua cabeça gira e a visão ainda meio turva não o deixa perceber muitos detalhes; porém você sabia dos animais, do sangue e das velas. Percebe também vultos indistintos andando pelo local, que mesmo estando um pouco tonto você repara ser um lugar grande.

Então, como um raio que passou ligeiro por sua cabeça entorpecida a verdade lhe atinge.

Dopado. Você está dopado.

A revelação serve para lhe acordar um pouco e fazer uma débil tentativa de se levantar. Apesar do fracasso, foi possível perceber que era uma espécie de cama de pedra a base onde seu corpo repousava.

— Cláudio, tudo bem com você?

Mesmo sob o efeito de drogas não é difícil perceber a suavidade da voz de Adriana e reconhecer a voz da amiga. Também é possível sentir mãos suaves que o amparam e lhe ajudam a se erguer. Contudo, outro par de mãos — mais fortes e ásperas — surgem para segurá-lo assim que ameaça uma queda. Novamente a voz de Adriana:

— Desculpe por fazer você passar por isso, querido, mas foi necessário para evitar algum susto seu.

Você tenta perguntar “Susto? Que susto?”, mas sua voz não responde ao comando que vem de seu cérebro confuso e desiste. As mãos lhe carregam pelo lugar, seus pés arrastando no chão frio e áspero de pedra enquanto você acha divertido ficar descalço e se pergunta pelos seus tênis.

Deixam-no em uma cadeira alta, com as costas grandes e longos braços nos quais você tenta se apoiar... e fracassa. Sua queda é interrompida por várias mãos que o recolocam na cadeira. Alguém diz algo como "ele vai cair, é melhor amarrá-lo" e logo depois isso acontece: correias são passadas em seus pulsos e tornozelos, cintas seguram sua cintura e pescoço e você se sente agradecido por ter algo que o impeça de desabar.

— Desculpe de novo querido, mas não queremos que se machuque.

A voz de Adriana fica ainda mais linda em meio ao seu torpor ao mesmo tempo em que uma explosão de alegria irrompe dentro de seu peito. Ela o chamou de "querido", isso significava que após três meses de tentativas ela iria finalmente dizer sim. Por um momento uma visão dela passa na sua frente: loira, linda, olhos azuis e profundos como o mar e boca carnuda de sorriso de criança; um corpo escultural que deixava a todos na escola enlouquecidos. E ela iria ser só sua.

A visão continua com ela dançando suavemente a sua frente. Veste uma túnica negra semi-transparente onde se pode perceber as curvas provocantes que ela carrega consigo. Surge um homem, também de túnica negra, que começa a dançar com ela. E então surge outro... e outro... e outro. Logo, ela dança com vários homens diferentes. E de repente não é mais dança, é algo obsceno e inadmissível. "Não" — você consegue raciocinar — "Não a Adriana”. Todos na turma sabem que ela não faz essas coisas. É a maior 'jogo duro' do colégio".

E por não aceitar, sua mente desliga a visão.

Depois de algum tempo, todos começam a entoar uma canção estranha, ligeiramente assustadora, lembrando uma fita chata a que seu pai o havia obrigado a assistir Carmina Burana ou algo assim. A cantiga cresce e enche o recinto feito de paredes de pedra. Engraçado, mesmo em torpor você sabe que as paredes são de pedra. A canção deixa de ser ligeiramente assustadora para se tornar apavorante de verdade.

Neste ponto é que você percebe que seus sentidos estão realmente fora do normal. Afinal, aquilo que apareceu a sua frente não pode ser realidade. Coisas assim não existiam, só em filmes.

Tem um Demônio parado à sua frente.

Esta criatura que não existe deve ter uns três metros, a pele fortemente avermelhada não disfarça o fato de aparentar ser feita de couro, os dois enormes chifres saem de sua testa recurvando-se para trás quase não chamam a atenção quando você nota os olhos amarelados de gato neles. Você começa a rir quando se lembra do filme "A lenda" e seu ato passa a ser acompanhado por todos os presentes. Sua risada só acaba quando o Demônio ri junto.

Mas o susto foi apenas passageiro. Você logo se recompõe e começa a achar que o pessoal colocou algo na sua bebida ou comida e que isso está provocando estas alucinações. Que seja! O negócio é se divertir com a viagem.

— Iludido, preste atenção! — o Demônio fala. E você ri: a voz dele lembra a de Darth Vader...

— Eu sou aquele que reinará neste mundo após o Armageddon, carrego o dom de tirar toda a esperança que possa existir e apenas aqueles que servem a mim estarão livres de meu terrível toque. Meu nome é temido em toda a criação, pois eu carrego a força capaz de tirar a força de alguém. Meu nome é impronunciável no seu mundo, mas aqui eu tenho outra denominação e meu toque já foi sentido por todo e qualquer iludido que pisou neste resto de mundo. Eu sou Desespero! — ele se agacha e aproxima o enorme rosto de você, observando-o, o fedor é inacreditável — Sua presença aqui, frente a uma de minhas muitas formas, tem um objetivo. Contudo, você deve antes saber a verdade...

Você tenta se posicionar melhor para ouvir o que ele tem a dizer — aliviado por perceber que o torpor está terminando — achando agora que as amarras são um pouco incômodas. Concentrando-se, dentro do possível, tenta afrouxá-las e descobre decepcionado que não tem controle da ilusão.

— Ocorreu uma rebelião no Shamaim, relatada em vários de seus livros religiosos na forma em que cada um acredita ser a verdadeira. Esta não nos interessa. Todavia, iludido, ocorreu uma segunda rebelião — desta vez no Sheol. Vários Anjos caídos resolveram tomar o poder nas fossas abissais. Os Anjos são divididos em classes, sabia, iludido?

Você balbucia uma resposta negativa, jamais se preocupou com Anjos antes e não pretendia começar agora. Só gostaria que a criatura parasse de lhe chamar de "iludido".

— Sim... — ela sibila — ... são. E cada uma delas teve seus próprios motivos para participar da Segunda Rebelião, desde os mais "nobres" até os mais "impuros". Mas, é claro, estavam à beira da derrota quando o nosso temeroso senhor, Sathanael, percebeu neles um boa forma de se livrar do julgo do tirano celeste e enviou uma parcela deles para Adamah!

Você se prepara para perguntar o que é Adamah, mas ele responde que é "o mundo ao qual vocês batizam de Terra" — como se estivesse lendo seu pensamento — e você adora isso.

— Por um tempo eles começaram a andar por este mundo infeliz, perdidos e sem objetivos. Aos poucos isso mudou; uns retomaram os objetivos anteriores, outros descobriram novos e alguns perceberam o óbvio: que não importa o lado vencedor, eles seriam rechaçados de qualquer jeito. Por isso, criaram filhos. Estes seres, híbridos de humanos com Anjos caídos, seriam usados por seus Genitores para que seus objetivos fossem atingidos.

Você percebe um movimento estranho na boca do Demônio e, cada vez mais apreensivo com sua "visão", nota que aquilo está sorrindo!

— O que eles não sabem é que, na verdade, estão seguindo os desígnios do grande Sathanael. Ao criarem mais de seus filhos — os assim chamados Nefilim — eles nos fornecessem matéria-prima para a criação dos maravilhosos diávolos. Eles são os nossos soldados perfeitos: cruéis, enlouquecidos, sem vontade própria alguma. É claro que este não é o único objetivo do nosso monstruoso líder, tudo isto na verdade levará a uma vitória nossa no Armageddon... e meu domínio neste mundo!

Seu torpor está acabando e você nota, um pouco apreensivo, que a pretensa ilusão só está ficando cada vez mais forte.

— É claro que os malditos bajuladores do manipulador da Criação imediatamente tentaram tomar de nós o que nos é por direito, mais uma vez. Eles criaram os seus malditos paradísios — imbecis sem mente e livre-arbítrio — para nos combater e ainda dizem ser do odiado líder deles este plano maravilhoso! Malditos sejam!

Você nota que ninguém mais falou nada desde a chegada do Demônio, porém uma sensação de aprovação pelas suas palavras correu o local.

— Contudo será nossa a vitória. E todos aqueles que não tiverem fé serão punidos.

Ocorre um momento de silêncio enquanto a coisa se mexe de um lado para o outro como um animal enjaulado. Aquilo decididamente o está apavorando e você já acha que é muito ruim ficar preso na cadeira. O suor frio começa a brotar em seu corpo e...

Espere! Suor frio? Este tipo de sensação não é comum em visões, ou pelo menos você nunca tinha ouvido falar nisso. Até que um segundo raio atinge sua cabeça esta noite.

Você não está mais dopado.

E isto significam outras coisas também. Aquele lugar é real, os bichos sacrificados são reais, as velas negras são reais, as pessoas vestidas de negro são reais.

Desespero é real!

A consciência disso o deixa em total pânico. Você começa a chorar e se debater enlouquecidamente, pedindo para sair dali. No fundo, compreendendo que agora sabe demais...

Sua atitude provoca um verdadeiro frenesi nos presentes, todos reagindo num cântico que formou um coro de cacofonia impressionante. O Demônio levanta a mão e todos se silênciam. Ele fala:

— Para manter a minha existência física neste mundo, preciso seguir as regras dele. E entre elas existem os sacrifícios.

Alegre-se, meu jovem...- ele fixa os seus olhos de lagarto (não eram de gato?) em você, que de tão hipnotizado só percebe que está gritando pelo horror que viu dentro deles quando a criatura fala novamente — ...você foi o escolhido!
Você começa a chorar e soluçar como uma criança, gemendo baixinho para que o soltem. Promete que não vai falar nada do que viu ali para ninguém, mas fica sem resposta. Adriana toma a sua frente com uma adaga cheia de inscrições e começa.

****

As últimas 3 horas de sua vida foram, sem dúvida, as piores. Sentiu dores e viu horrores que jamais imaginou na sua existência que pudessem existir. Quando Adriana terminou a primeira hora de sofrimento, fazendo as inscrições rituais no seu peito, você tentou balbuciar algo. Ela aproximou o ouvido de você, que conseguiu balbuciar uma frase:

— Eu sempre te amei! De verdade...

Ela recuou chocada e não participou mais do ritual. Quando você foi pendurado de cabeça para baixo acima do altar profano e lhe deram o golpe final, a última coisa que você viu foi uma lágrima caindo dos olhos dela.

Mas, enquanto morria, uma voz terrível ecoou dentro de sua mente dizendo: "Ela se arrependeu, o que significa que perdeu a utilidade. Eu agradeço, jovem tolo, pelo fornecimento de nova matéria-prima para outros sacrifícios."

E você partiu, para algo que certamente não é o descanso final.




UM CONTO DE DESESPERO foi escrito por Danilo Faria

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