domingo, 16 de dezembro de 2007

Maytréia 7: Vida Perdida

Sei que o que vou lhe dizer pode decepcionar você. Sei também que você discordará e tentará achar motivos diversos para mostrar que estou errado. Mas acredite, eu venho pensando nisso há meses e o que descobri ontem só serve para confirmar minha posição. Afirmo com uma tranqüila convicção que o melhor que pode me ocorrer agora é partir deste plano.

Sim, com isso eu quero dizer desencarnar. Enfim, morrer.

Por favor, não diga nada ainda. Eu tenho razões profundas para fazer isso. Na verdade, eu tenho uma única razão que é a suficiente para que esta posição seja assumida. Você sabe que nós Iniciados, vivemos em função do equilíbrio de nosso kharma e na intenção de cumprir nosso dharma. Um Iniciado que não consegue isso só tem duas opções: morrer ou tentar viver uma vida mais feliz seguindo a trilha comum já tantas vezes trilhada pelos Doutrinados. Quando se é um neófito, creio que esta última ainda é uma opção viável, mas depois de um tempo ou se tem tudo ou não se tem nada.

E eu já tenho muito tempo. E fracassei para com o cumprimento do meu dharma.

Isto significa que eu perdi a razão de viver. Entenda, eu praticamente abandonei minha vida “mundana” para que meu dharma fosse cumprido. Deixei para trás amores, sonhos e planos. Coloquei minha vida particular, minha família – tudo enfim – em segundo plano. Apostei literalmente minha existência na intenção de ser útil à humanidade.

Sabe, quando descobri meu dharma, foi um momento de glória inesquecível. Eu havia entendido a causa de minha existência neste mundo de dor e sofrimento. Ao contrário da maioria das pessoas que não sabem o que vêm fazer neste mundo, eu tinha noção plena do meu papel nos desígnios da Divindade. Eu me sentia... abençoado.

Posso lhe dizer qual é o meu dharma agora que sei que fracassei. Não, não se preocupe. Sei o que estou fazendo. Confio em você. Mas onde eu estava mesmo? Ah, sim. Meu dharma é o de ensinar as pessoas a descobrirem o caminho de sua Evolução. Lindo não? Bom, é claro que posso acha-lo tão belo por me identificar com ele. É o meu dharma, afinal.

Eu deveria descobrir e mostrar as pessoas os mais diversos Mestres e Mestras que contribuíram para o desenvolvimento da Humanidade. Não apenas Mestres místicos, muito pelo contrário. Cientistas, filósofos, políticos, artistas, escritores e homens e mulheres de negócios – entre outros – faziam parte da lista de pessoas que criaram idéias que eu deveria desvendar e tornar o mais claro possível para a maioria das pessoas. Eu não criaria nada de novo, infelizmente, mas seria o seu divulgador.

Eu nasci para ser um arauto.

Onde fracassei? Eu descobri meu dharma há 10 anos atrás. Nesta época, estava apaixonado. E como todo homem apaixonado, eu a achava perfeita. Sua pele era pura seda para mim. Seus olhos, negros como a noite, me prendiam ao mesmo tempo em que me encabulavam. Sua voz adocicava minha vida. Suas diversas formas de sorrir preenchiam meu dia – desde seu sorriso encabulado quando eu elogiava sua beleza até sua gargalhada franca de pura alegria quando eu brincava com ela. Até mesmo uma pequena marca de nascença que ela carregava era linda para mim.

Seu pai, obviamente, me detestava. Ela era filha única e ele um viúvo muito amargurado. Sua definição religiosa fazia com que eu me transformasse num demônio em pessoa. Aos seus olhos, eu havia saído das fossas abissais com o único objetivo de seduzir a filha dele.

Sei que isso é engraçado para nós. Sabemos que se existisse um demônio ele iria procurar almas mais... rentáveis. Nenhum ser de milênios de idade irá se preocupar em tentar um humano que não faz a menor diferença na existência. Eles devem estar mais preocupados em atrair para as suas fileiras Presidentes de países, donos de empresas, artistas de grande influência, grandes militares... ou até líderes religiosos. Por que perder tempo com qualquer pessoa comum, não é mesmo?

Mas, para o pai dela, isso era sério. Ele acreditava realmente num demônio pessoal. E acreditava que eu fora enviado por ele. Isto só piorou quando ele soube que eu estudava assuntos que não se encaixavam naquilo que sua religião considerava santificado. Devemos respeitar isso. Faz parte do momento de Evolução dele.

Eu não entendi isso na época. Quando ele pressionava e agia para destruir meu relacionamento com ela, eu “caia como um pato” nas suas armadilhas. Não entendia que quando nosso encontro acabava eu seguia para minha casa, enquanto ela ficava sozinha com um pai neurótico, que pressionava sua filha indefesa de todas as formas; desde a chantagem emocional até o terror psicológico. Tensa, ela me pressionava. E eu – covarde – não entendia o lado dela. Eu cometia o maior dos erros.

Eu a fazia sofrer.

Não, não estou sendo duro demais comigo. Em meu egoísmo, não percebia que a mulher de minha vida sofria e precisava de mim. Ao perceber que o único momento de alívio e felicidade dela era comigo, deveria saber levar tudo até as coisas se ajeitarem. Mas não, apavorado, pensando apenas em mim mesmo, tomei a pior das atitudes quando achei que não podia agüentar mais. Eu a dispensei.

Isso foi há 10 anos atrás. Eu passei 10 anos apostando que conseguiria encontrar o equilíbrio enquanto trabalhava meu dharma e tentava limpar meus kharmas negativos. Tinha certeza absoluta que voltaria a vê-la. E, quando isso acontecesse, estaríamos mais maduros e poderíamos tentar novamente.

Passei estes anos todos relegando minha vida pessoal para o segundo plano. Depois que me separei dela, o resto foi fácil. Fui me desligando do mundo como se fosse um arquivo sendo apagado da memória de um computador. E assim trabalhei em subempregos, perdi o contato com meus pais, não terminei a faculdade, me tornei um estranho para primos e tios, consegui apenas meia dúzia de amigos fiéis (você entre eles) e vivi amores superficialmente. Não tinha um futuro fora do meu dharma. Claro que imaginava que ela estaria neste futuro, mas depois que meu dharma fosse estabilizado.

Cerca de 8 meses atrás, entendi uma coisa. Ela fazia parte de meu dharma. Talvez eu devesse trabalhar com ela. Talvez tivesse que ser a minha principal aluna. Talvez tivesse algo grandioso a ensinar ao mundo e eu seria seu arauto. Ela não precisava ser uma Iniciada para que isso ocorresse. Exemplos assim existem aos montes. Ela simplesmente não havia adquirido kharmicamente o direito de ser uma Iniciada, mas isso não impede ninguém de ser grandioso. Ela poderia até mesmo ser apenas minha companheira, aquela que me daria a percepção da dimensão humana de que faço parte, daquilo que verdadeiramente sou. Todavia – na minha cegueira, no meu medo, no meu egoísmo – eu a dispensei. Como conseqüência, minha vida foi se desfazendo e eu virei uma sombra do que deveria ter sido. Vivi uma vida mais falsa e ilusória do que a dos Doutrinados, por minha própria criação.

Depois disso, eu simplesmente não consegui completar meu dharma. Bati cabeça em muros e paredes sem fim e simplesmente a coisa não deu certo. Quando percebi tudo 8 meses atrás, comecei a procurar por ela. Mas era tarde. Ela saiu de seu emprego, mudou-se e casou. Contudo, eu ainda tinha esperança. Acreditava que poderia consertar toda a besteira que fiz e – talvez com um pouco mais de esforço – ajudar a ela e a mim mesmo.

Até que ontem encontrei seu pai casualmente na rua. Ele ainda tinha uma raiva pulsante de mim e eu não entendia o motivo. Mas havia algo mais. Algo brilhava diferente nos seus olhos quando me reconheceu. E quando percebi o que era, meu estômago embrulhou e contraiu-se como se fosse desaparecer num buraco dentro de mim.

Ele sentia uma dor muito grande. E, na mesma hora que percebi isso, soube o porquê.

Com essa mistura de raiva e dor ele me contou das circunstâncias da morte dela. De como se suicidou por não agüentar mais apanhar do marido. De como passou 10 anos esperando que eu voltasse. De como passou estes mesmos 10 anos culpando o pai por ter me afastado dela. De como morreu achando que eu não a amava, se perguntando o que foi que tinha feito.

E, acima de tudo, ele me contou como soube de tudo isso através do bilhete suicida que ela deixou endereçado ao pai para que fosse entregue a mim, como um último desejo.

Não, não precisa do lenço, obrigado. Isso já passa. Eu passei a noite toda pensando sobre a grande besteira que fiz. Sobre como joguei duas vidas fora. Pensei em suicídio, sabe? Mas sabemos o que acontece aos suicidas e não pretendo fazer mais essa besteira. Eu sei, eu sei. Sei como ela está agora devido ao que fez... e sei de quem é grande parte da culpa. Pretendo ver se a encontro no plano astral. Ela deve estar sofrendo presa em algum Sono da Alma e o mínimo que posso fazer é tentar resgata-la.

Sei, sei, é perigoso. Posso ser engolido no pesadelo em que ela se encontra. Aliás, considerando-se que é uma suicida, é bem provável que isso aconteça. Mas não posso fazer outra coisa. O que de pior acontecer, eu serei merecedor.

Parto amanhã. Deixei tudo pronto. Estou aqui para lhe dar um abraço e dizer que acredito que você será capaz de completar seu dharma. Sim, eu acho que sei qual é, mas não vou dizer. Afinal, eu poderia estar errado e isso poderia estragar a encarnação de mais um. Sem contar que se eu estiver certo, aí sim terei estragado sua vida mesmo!

Mande meus agradecimentos a minha Tutora. Diga a ela que muito me honrou que ela fosse minha instrutora e mestra e que eu fiz o máximo para ser digno. Apenas errei numa curva do caminho. Sei que ela sentirá, mas tentará demonstrar que não para você. Por isso, apenas dê o recado, certo?

Hoje à noite darei um forte abraço nos meus pais. Pedirei desculpas a eles pelo estorvo que fui. Sei que dirão que se orgulham de mim, mas eles não podem esconder sua preocupação e dor de um Iniciado. Tentarei não criar um clima de despedida. Eles não merecem sofrer mais por minha causa. Acredito que você poderá criar uma imagem bem positiva de mim para eles. Não por mim, é claro. Mas por eles mesmos. Um prêmio de consolação pela decepção que fui na vida deles.

Vivo agora com a sensação de que esta encarnação acabou. Se a Divindade for misericordiosa, morrerei logo. Mas não creio que seja merecedor desta dádiva. É um kharma a mais para ser trabalhado. Adeus.

Mal posso esperar para mergulhar no esquecimento.
VIFA
VIDA PERDIDA foi escrito por Danilo Faria

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