domingo, 16 de dezembro de 2007

Rebelião 12: Reencontro


No alto da montanha havia uma velha choupana. Abandonada há anos, talvez até mesmo há décadas, oculta por trás das sombras dos carvalhos que a cercavam. Hoje ela não está vazia. Ao redor de um círculo pintado no chão, marcado com signos de um alfabeto obscuro, sentam-se duas pessoas, em silêncio absoluto.

O brilho da lua entra pelas frestas da madeira carcomida, iluminando os cabelos cinzentos de Rudrah, presos num coque. O taciturno indiano é alto, com nariz aquilino e tez de cobre. Uma barba rala decora seu queixo pontudo e em seu peito brilha um disco de prata. À sua frente, os olhos azuis de sua companheira de meditação cintilam ao luar como duas estrelas. Cabelos negros curtos e espetados, pele clara e um corpo sensual mal-disfarçado pela túnica violeta. Uma tiara dourada emoldura sua face juvenil. Só aqueles que conhecem sua verdadeira natureza a chamam de Stella Maris.

A operação é interrompida por barulhos vindos da porta. Um viajante de baixa estatura, porém robusto, de olhos orientais e pele dourada, nascido há muito tempo atrás nas areias do deserto de Gobi. Os cabelos são compridos e as roupas surradas. De um bolso empoeirado ele retira sementes que mastiga com voracidade. Baldan — este era seu nome — abre um largo sorriso, e de outro bolso ele retira uma flor, murcha e seca. À medida em que sorri a flor desabrocha em sua mão adquirindo uma coloração magnificamente sobrenatural. Ele a coloca entre os cabelos de Stella Maris e se senta junto aos dois amigos.

O silêncio prossegue agora com os três, até que a eles se junta uma quarta pessoa. Os três não podem ver o luxuoso carro que ficou estacionado muito abaixo, no início da trilha de pedras. Uma elegante mulher caminha em direção à cabana, com passos de uma maciez felina. Nenhum dos funcionários da pujante Corretora Silverstar seria capaz de imaginar Jessica McNicols, a onipotente presidente da empresa, passeando por uma cabana em ruínas neste momento.Ela se junta aos três peregrinos, tira cuidadosamente o pó do vestido, e se senta ao redor do círculo. Jessica já foi chamada por muitos nomes, mas neste momento, só deseja ser chamada pelo título que seus irmãos Precursores lhe conferiram: Episcopa Demetria.

Michel Marie corre vigorosamente pela trilha na montanha. Os olhos luzindo num demoníaco brilho escarlate contrastam com sua pele negra. O gigantesco corredor percorre a trilha com uma facilidade e velocidade que nenhum ser humano poderia sequer tentar. Michel Marie hoje teve uma visão de seu pai. Um anjo com asas de nuvens, cuja cabeça alcançava os céus, as trombetas ainda ressoando em seus ouvidos. Michel Marie sabe que nunca mais sentirá a brisa tropical do mar do Caribe de onde vem. Mas isto não o impedirá de fazer o que tem de ser feito.

O que restou da porta da velha choupana enverga-se até quase quebrar ante a pressão de seus punhos poderosos. Assim que entra, vê imediatamente surgir à sua frente uma chinesa vestida toda de negro, brincando com uma chama que se contorce entre seus dedos como um ser vivo. Huang Lu lança um olhar de desdém e profere uma frase curta e seca:

— O último acaba de chegar. Neste momento.

Um clarão cegante irrompe pela porta engolfando a todos. A claridade dura mais alguns segundos, em meio a ela vai se delineano a silhueta magra do último visitante.

— Muito bem, rapaziada. O nariz de contornos esculturais, o charme libertino dos faraós, a elegância de um chacal das dunas, e um senso de humor que faz os Céus e os Infernos tremerem! Adivinhem quem é? – brinca, numa risada contagiante.

Rudrah se levanta. Pela primeira vez esboça um sorriso, e dá um forte abraço em seu amigo de longa data. Então sua voz rouca e profunda como um rugido é finalmente ouvida:

— Que bom revê-lo, Velhinho.

Stella Maris também se ergue e cumprimenta seus hóspedes.

Eu mesma convoquei esta reunião. Vocês devem estar se perguntando o motivo. Não nos vemos há mais de trinta anos.

A chinesa extingue a chama com que se distraía e senta-se ao pé da extinta lareira.

— Só imagino que seja algo de grande magnitude. O primogênito dos Acólitos, uma Episcopa dos Precursores, um Patrono dos Paladinos, uma Venerável de Oitavo Patamar e um Guardião que participou da Primeira Congregação. Convocados por dois Visionários que são Escribas...

— É, só os figurões! Girando como planetas ao redor deste cuja luz é como o Sol!

— Sem gracinhas, Velhinho, pelo menos desta vez.

A Visionária de olhos azul-celeste, se levanta, posicionando-se no centro do círculo, e anuncia em voz alta:

— Decidi reunir nossa Congregação porque corremos grande perigo, uma grande ameaça paira sobre nós... e esta ameaça ... sou ... EU !

Todos, num silêncio quase sepulcral, olham para Stella Maris. Ela cai de joelhos. E chora. Chora copiosamente, durante alguns minutos que parecem ser horas. Ninguém ousa dizer uma palavra. Então, ela enxuga as lágrimas, se ergue e gira o corpo, encarando cada um de seus amigos. Ela está diferente. Uma diferença sutil, sutil demais. Rudrah é o primeiro a perceber...

... e a morrer. Um poder invisível captura seu corpo, e ele é catapultado com tanta força que atravessa as paredes, se chocando na parede rochosa que se ergue atrás da choupana. Crânio esmagado e ossos triturados. Sangue e vísceras escorrem pela pedra.

Stella Maris começa a levitar - O CHAMADO CELESTE... eu o sinto cada vez mais forte dentre de minha cabeça...NÃO HÁ COMO DETÊ-LO... estou perdendo a vontade própria ... não sei mais se fui eu quem os chamou aqui ... OU FOI A OUTRA PARTE DE MIM MESMA... Fujam! Ou me matem agora mesmo! Por favor... TENTEM ME MATAR, SE CONSEGUIREM... sinto uma voz me ordenando... ME COMANDANDO... OS PORTÕES DO CÉU ESTÃO SE ABRINDO... TORNO-ME UMA PARADISIA...pobre Rudrah...não queria...

Michel Marie tenta segurar Stella Maris pelos braços. A delicada holandesa de braços finos, parece sumir encoberta pelo enorme corpo do Paladino de pele escura. Todos assistem horrorizados quando Michel Marie é cortado ao meio como se fosse um boneco por um golpe fulminante da visionária. Ela agora brande uma lança de luz mágica.

TOLOS QUE TENTAM ME SALVAR...EU ESTOU ALÉM...

A flor que estava em seus cabelos incha, transformando-se num monstrengo vegetal cujos tentáculos espinhosos tentam estrangulá-la. Intuindo o estratagema do Guardião, o atinge com uma rajada de seu ferrão mental.

Velhinho tenta alguma magia para reverter a morte de Michel, mas a movimentação incansável da Paradisia não o deixa se concentrar. A luz serpeante que se projeta da testa da Visionária fustiga a todos como um chicote de fogo violeta. Huang Lu tenta mover uma onda de pressão telecinética contra a garota. Por um breve momento, Stella parece sentir o golpe, mas logo contra-ataca, repelindo com uma explosão que lança todos para longe.

Velhinho se vê estendido no matagal, com um braço amputado. Baldan está deitado vários metros atrás, um corte profundo no rosto. A choupana finalmente desaba, e acima dos entulhos paira o corpo nu e translúcido da Paradisia, braços abertos, com pernas e pés esticados num alongamento máximo. Acima dela, começa a se formar uma fresta luminosa.

A criatura celestial projeta um carrossel de luz e sombra pelo capim. De uma das faixas escuras, emerge uma sombra negra característica dos manifestos abissais. É Demetria, e está furiosa.

A fresta no céu se alarga assumindo a forma de uma cruz. Stella Maris começa a subir, seu corpo cada vez mais transparente, e, após lançar o derradeiro olhar para nosso mundo, é tragada pela cruz luminosa, que então some.

Os nefilim vão se recompondo aos poucos, todos feridos ou mutilados. Assistiram impotentes à destruição de dois de melhores amigos, e a presenciaram uma Ascensão. Levantam-se. As cicatrizes físicas serão curadas com o tempo, mas algumas marcas vão ficar para sempre.

REENCONTRO foi escrito por Simoes Lopes

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