quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Rebelião 20: Ira


Sempre começava assim. Ardia horrivelmente a partir do ponto em que foi mordida, e depois ia se espraiando por todo seu corpo. A dor lhe causava uma espécie de tesão absurdo, um tipo de prazer doloroso que a deixava cada vez mais e mais ligada, até não se agüentar mais. Quando sua pele humana começava a se romper e tufos hirsutos e volumosos surgiam das frestas, ela quase delirava. Era um tesão tão grande, tão intenso que ela ficava louca — tesão causado pela dor, pela vontade de infligir dor, de matar devagarinho, com crueldade. É isso aí: ira era tesão de matar. E ela "trepava" muito — como louca! Às vezes se empregava num puteiro qualquer quando estava chegando a época, e rezava para a casa estar cheia quando acontecesse, e freqüentemente estava. O primeiro era sempre o melhor — no meio da transa sua pele explodia, deixando o babaca cheio de pedaços ensangüentados de carne, com um monstro lupino de mais de 2m e 200kg lhe enganchando com as pernas! Era bom demais... ela até tentava ser silenciosa, para matá-los um por um, mas não dava, era muita loucura, todo aquele sangue quente em seu corpo, e as tripas e todo o resto. Ficava empapuçada, com os pelos pegajosos. Mas isso é normal: o amor é sujo.

O problema é que começou a ficar diferente... mais intenso. Ela continuava matando alucinadamente, desesperadamente, mas estava ficando cada vez mais rápida, mais insaciável. Antes, depois de uma chacina ela voltava ao normal e se masturbava no local da matança, toda suja de sangue mesmo, mas com uma sensação boa de saciedade. Mas a sensação não perdurava mais. Às vezes, ela voltava a se transformar e procurava mais gente para matar. Ira era o tesão de matar muito.

Há seis meses, ela começou a trocar de pele fora da lua cheia. Matou um monte de gente, a noite toda, e quando o dia raiou e ela voltou ao normal, não se masturbou — se agachou e começou a comer os pedaços que haviam sobrado de suas vítimas, chupando o tutano dos ossos e descansando sobre suas carcaças sujas e gordurosas. Ira não era mais tesão. Era fome.

Há uma semana, de carona com um caminhoneiro, às 15h45min, enquanto o velho tentava comê-la numa parada à beira da estrada, aconteceu. Ela se transformou e matou todo mundo no pequeno motel. A fome era insaciável, e quando não tinha mais ninguém pra matar, começou a destruir os veículos. Não era mais fome, era fogo.

Hoje, ela se mudou para uma favela. Acha que não queria fazer isso, mas não se importa, não mesmo. Ela quase não fala mais, está esquecendo as palavras. Antes, tinha medo de ser pega, mas vê que tem alguma inteligência em seus atos bestiais: ela nunca deixa testemunhas, e mata erraticamente, sem chamar muita atenção. Até porque não sobra muita coisa de suas vítimas. Acha que come uma parte e enterra ou queima o resto quando volta ao normal, mas não se lembra.

Agora ela tem um campo enorme para ceifar, mas precisa de mais cuidado ainda. Quando não troca de pele, fica louca, angustiada, andando de um lado para o outro. Seu corpo parece um mosaico estranho, pois quando não tem ninguém para matar, fica se cortando, arrancando grande e dolorosas tiras de pele que se regeneram em poucos minutos, só para ela cortá-las novamente. Suas unhas vivem sujas, cheias de pedaços sangrentos de sua própria carne.

Mas hoje ela entende. Apesar de sua mente ter regredido a um nível imensamente primitivo, ela vê que ira não é tesão, nem fome, nem fogo. Ira é como um câncer — um enorme tumor que infecta tudo com o que entra em contato, destruindo cegamente, sem prazer, só com uma necessidade urgente e enorme como o vazio, impossível de ser saciada.

Um câncer que consome a tudo, mas principalmente ao seu portador.



IRA
foi escrito por Renato Simões


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