quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Rebelião 22: Antípodas


O sol brilhava forte. Nas árvores frondosas, macacos de pelagem amarela pulavam pelos galhos, enquanto enormes morcegos dormiam dependurados de cabeça para baixo. Um búfalo ruminava preguiçosamente na relva alagada. Uma grande cabeça de pedra, quase inteiramente coberta pela vegetação, parecia vigiar a entrada de uma gruta. Lá dentro, o corpo miúdo de Gauri Ingavat banhava-se ao brilho pálido de uma pequena fogueira. Sentada em posição de lótus, a pequena tailandesa entoava um misterioso cântico, enquanto derramava o conteúdo de uma pequena tigela de barro no fogo. À medida que o líquido pingava e fervia, fazendo um suave chiado, o fogo alterava sua cor, passando do amarelo ao verde, e deste ao verde-azulado escuro. Uma fumaça escura embaçava os óculos de aro fino da mulher, que olhava fixamente para o teto. As pupilas se dilatavam. Uma fenda no teto da gruta projetava um fino facho de luz que refletia em suas lentes. Os olhos brilhavam agora com o mesmo matiz das chamas.

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Os picos nevados da cordilheira dos Andes dominavam a paisagem, iluminada pelo brilho da Lua Cheia. O silêncio era absoluto. A vários quilômetros abaixo da linha da neve, uma fileira de arbustos espinhosos de folhas negras crescia na borda de um penhasco. Rodeada pelos arbustos, erguia-se uma solitária árvore de casca ressecada. Os tons cinzentos do cenário contrastavam com o padrão multicolorido de um poncho. Coberta pelo poncho havia uma índia, sentada no chão desconfortável, bem embaixo da árvore morta. Os olhos de Soledad Ucayali estavam brancos, a pele morena castigada pelo ar frio que soprava das montanhas. Estava lá, imóvel, já há bastante tempo – horas? dias? - os olhos vidrados mirando o abismo. Dentre as dobras do poncho, puxou um copo cheio de um líquido ralo vermelho-escuro. Bebeu de um gole só o chá amargo. A respiração da peruana se acelerava cada vez mais, seu coração pulsando com força. No fundo do copo se depositavam sementes amarelas. Mastigou uma a uma. Olhou fixamente para o abismo.

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Gauri estava agora flutuando num mar revolto e escuro. Pensou, por um breve momento, estar vendo sua amiga Soledad Ucayali, debatendo-se junto a ela. Torvelinhos muito fortes a repeliam. (Uma rápida imagem da fenda na caverna) Estava agora no alto de uma indescritível torre de marfim, como se vigiasse algo. Além do mar revolto, erguia-se a perder de vistas um compacto bosque de arbustos negros. (Uma rápida imagem da fenda na caverna) Sua visão projetava-se agora para além do mar, e agora podia ver a tenebrosa praia de perto, onde uma multidão permanecia imóvel, entoando um cântico monótono, como se tentassem gritar algo a ela. Tentou, mas não conseguiu descobrir quem eram eles. (Uma rápida imagem da fenda na caverna)

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Soledad também se viu à deriva num mar revolto de águas escuras. Por um momento, teve a nítida impressão de avistar sua amiga Gauri Ingavat. Sentia correntezas muito fortes puxando-a com violência. (Um rápido relance do abismo) Estava agora em pé, numa espécie de praia, coberta de espinheiros de cor negra. Além do mar revolto, além do imenso mar de trevas, uma enorme torre branca projetava-se ao fundo, rumo ao céu negro. (Um rápido relance do abismo) Podia sentir seus sentidos ultrapassando o oceano, e ganhando uma visão de perto da majestosa construção. Um multidão se postava junto às muradas do colossal edifício. Ela podia sentir que gritavam algo para ela, mas não via quem eram. (um rápido relance do abismo)

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As imagens da caverna e das montanhas se fundiam gradualmente numa só. A selva ensolarada da Tailândia e a paisagem noturna dos Andes se mesclavam como um enorme caleidoscópio de luzes e sombras. As duas se viram de novo à deriva nas águas tenebrosas. Suas mãos quase se tocaram. Então o manto do esquecimento cobriu tudo.

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Como se um poderoso jato de luz cortasse a paisagem ao meio, Gauri via agora o céu escuro começando a clarear, à medida que sentia-se cada vez mais leve. Supreendeu-se sobrevoando em alta velocidade um imenso oceano de águas verdes e fosforescentes. (Uma rápida imagem da fenda na caverna). As ondas tranqüilas no imenso mar luminoso banhavam um arquipélago de ilhas que reluziam como esmeraldas. Um tapete de flores translúcidas cobria o terreno, com uma suave melodia emanando de cada pétala. (Mais uma rápida imagem da fenda na caverna). À sua frente agora estava uma mulher erguida, com os braços esticados junto ao corpo. A cabeça era inteiramente raspada, com símbolos tatuados nas têmporas e os olhos fechados. Uma túnica branca brilhante e cobria-lhe o corpo. Era um Paradisio, um nefilim que ascendeu. (Uma rápida imagem da fenda na caverna) A mulher abre os olhos. Gauri grita com o que vê (Outra rápida imagem da fenda na caverna).

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Soledad sentia seu corpo cada vez mais pesado. As águas turvas ficavam cada vez mais espessas e viscosas. Suas forças pareciam sumir, e ela afundava sem parar. (Um rápido relance do abismo). Um aterrador cenário inteiramente novo se descortinava. Caudalosos rios de lava corriam por entre massas disformes de rocha negra. Ventos carregados de odores sulfurosos sibilavam com violência ao redor de uma enorme palácio em forma de catedral. Vitrais cor de sangue reproduziam com uma nitidez horripilante figuras demoníacas. (Mais um rápido relance do abismo) Ela se encontra agora numa passagem estreita. Um cheiro fétido e animalesco emana de uma gaiola, onde uma mulher encontra-se acocorada, de olhos fechados. Seus dentes são amarelos, a língua pende para fora. Os cabelos são sujos e chegam até o chão. Algumas das unhas são grandes como garras, outras estão roídas. O corpo nu está coberto de cicatrizes e placas de pus e sangue coagulado. Correntes de ferro prendem os tornozelos. Assim é a triste imagem de um Diavolo, um nefilim que foi tragado por seu lado infernal. (Um rápido relance do abismo). A criatura sub-humana abre os olhos. Soledad grita. (Outro rápido relance do abismo).

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Gauri está agora olhando para si mesma. Sua contraparte celeste lhe diz: - NÓS SOMOS UM SÓ. LIBERTA-TE DA MATÉRIA. NÓS ESTAREMOS À TUA ESPERA. Só agora Gauri pode visualizar o panorama inteiro. Ao lado da mulher celeste, enfileiram-se muitas outras. Em Todas ela só consegue ver o seu próprio rosto. Começam a entoar em uníssono um cântico de vitória. Estão dispostas em formações concêntricas ao redor de uma magnífica pirâmide de luz. Ela sente uma vontade incontrolável de juntar-se ao coro. Mas não consegue emitir nenhum som.

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Soledad olha para o monstro na jaula e reconhece a sua própria imagem, como se refletida por um espelho maligno. A criatura nada diz, apenas grita. O barulho faz o seu corpo tremer, e ela agora sente todas suas células transbordando de ódio, medo e desejo. Então olha para baixo e vê: gaiolas e mais gaiolas, incrustadas num paredão de pedra. Em todas as jaulas ela vê cópias de si mesma, todas agora reunidas num mesmo alarido frenético. Ela sente a gritaria como uma espécie de convite, sente sua mente desaparecendo, capitulando. Quer gritar também, se juntar à algazarra demoníaca, mas não consegue.

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Ambos os pesadelos se desfazem ao mesmo tempo. Gauri desperta em sua caverna. O raio de luz agora brilha sobre as brasas restantes da fogueira. Soledad seve deitada no solo, embaixo da mesma árvore de antes. Ambas então compreendem porque de seu mestre proibí-las de tentar o ritual. A sensação de querer se juntar aos Paradisi em sua canção de guerra vai perseguir a pequena Guardiã tailandesa pelo resto da vida, enquanto que a algazarra infernal dos Diavoli ainda continuava ressoando nos ouvidos da Guardiã peruana.

Em dois pontos opostos do planeta, uma misteriosa simetria do destino fez com que duas Guardiãs tentassem desvendar os mistérios de sua existência, partindo em direções diametralmente opostas. Na sua busca pelos extremos, compreenderam que lugares tão longínquos como o Céu e o Inferno estavam na verdade bem próximos, escondidos dentro delas.



ANTÍPODAS foi escrito por Simoes Lopes

Retornar ao Universo Germinante

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