quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Maytréia 16: Soldados de Deus


Ano de Nosso Senhor de 1219. Um cortejo silencioso marcha pelos campos do sul da França. Dois padres, vestindo trajes maltratados, caminham com dificuldade, apoiados em cajados de madeira escura. Seguindo atrás, algumas dezenas de crianças marcham alegremente. Um grupo de cavaleiros, vestindo brilhantes armaduras prateadas, escolta o grupo.

São tempos difíceis, os espectros da fome, da guerra e da peste assombram a todos. Famílias empobrecidas, nobres decadentes e um cotidiano infernal formam o caldo de cultura para um fanatismo religioso de proporções irracionais. Quando os Padres Polycarp e Arnoulf adentravam os pequenos povoados assolados pela pobreza e por epidemias, a recepção era calorosa e frenética. O que os dois religiosos queriam era liderar uma cruzada de crianças rumo à Terra Santa, a fim de expulsar os infiéis e odiosos sarracenos de lá.

“Iremos até a Itália, e o poder santíssimo de Nosso Senhor irá abrir os mares para nossa passagem!”, gritava o Padre Polycarp em sua passagem pelas comunidades de Marselha. “Nossas armas serão a Glória de Jesus Cristo”, proclamava Arnoulf num povoador camponês de Provença. Os pais atormentados por uma vida mundana de penúria e sofrimento eterno, alegremente cediam seus filhos para participar de uma empreitada divina. Cavaleiros sem fama e sem posses juntavam-se ao grupo, na esperança do perdão de seus pecados.

E assim o séqüito foi crescendo ao longo do trajeto. O padre Arnoulf ordenou uma parada. Estava começando a chover, nuvens negras cobriam o céu, e o chão seco começava a transformar-se em lama. O religioso começa a entoar uma prece silenciosa, com os olhos grandes e azuis vidrados, olhando para o céu turbulento. Os cavaleiros mandam com rispidez as crianças reunirem-se numa gruta natural próxima dali. Polycarp ajoelhou-se, fazendo o sinal da cruz, e pediu aos Céus por um clima mais ameno, a fim de que chegassem a Gênova o mais rápido possível.

Quando ele levantou-se novamente, e abriu os olhos, percebeu a presença de um estranho cavaleiro, na charneca rala que cobria um pequeno platô rochoso.

Ele vestia uma armadura de bronze escurecida e profundamente corroída, o que era patente pelos veios verde-azulados de azinhavre que cobriam seus punhos e peitorais. O elmo era grande, com uma viseira estreita, e o homem carregava uma comprida e robusta espada de bordas serrilhadas. Montava uma enorme mula de pêlos negros e hirsutos.

A presença daquela peculiar figura incomodou os cavaleiros que compunham o cortejo dos cruzados infantis, e estes pediram ao misterioso viajante que se identificasse.

— Meu nome é Jacques Bonhomme, e sinto dizer que estou aqui para interromper esta insensatez! — gritou a plenos pulmões.

Os cavaleiros aproximaram-se lentamente, ofendidos pelo que parecia ser um gesto de improvável ofensa.

— A que te referes, pobre homem? — gritou Pierre de Grandville, em cujo escudo estava pintado um grande urso vermelho.

— Estas guerras já trouxeram muita dor a tantas famílias, e vós ainda quereis incitar pobres crianças a dirigir-se alegremente às portas do Inferno? Chega. Estou aqui para libertá-las, não ofereçam resistência.

O cavaleiro da armadura envelhecida acelerou a passada de sua montaria.

— Só pode ser uma pilhéria! — gritou Christofor de Neulacy, mantendo curtas as rédeas de seu enorme cavalo de crinas negras. — Como ousa um soldado desqualificado desafiar nobres guerreiros que dirigem-se à Terra Santa conforme desígnios divinos? Fuga, ou ensiná-lo-emos uma bela lição de compostura!

— Os nobres cavaleiros insistem em manter-se algozes de crianças indefesas, não me resta alternativa senão lutar convosco.... — a mula soltou um zurro fortíssimo, como que pontuando a frase convicta.

Os padres protestaram com veemência: — Soldado de Satanás, tuas ameaças não podem amedrontar aqueles que seguem os caminhos do Nosso Senhor Bom Jesus Cristo!

— Eu já trilhei estes caminhos, e sei que são apenas os homens que desejam trilhá-los, não há nenhum Deus por trás das maquinações mesquinhas dos poderes mundanos.

— Blasfemo! — gritaram Polycarp e Arnoulf, quase ao mesmo tempo.

O cavaleiro ergueu a espada e entoou um cântico numa língua desconhecida.

— Ele fala a língua dos demônios, ataquem, irmãos! Ataquem, soldados de Deus!!!

Eram três contra um. O mais jovem dos três cavaleiros, Chlodomerus de Tarbes, tomou a dianteira, brandindo uma espada reluzente do mais puro aço espanhol. O guerreiro de couraça esverdeada não fez nenhum movimento.

Chlodomerus golpeou com toda a sua força, mas o escudo rachado de seu oponente deteve facilmente o impacto. A espada serrilhada desceu impiedosa, partindo a armadura de seu inimigo com grande estrondo. Este ainda tentou uma segunda estocada com a espada, mas em vão. O homem misterioso era muito rápido em suas esquivas.

Os outros dois nobres vieram juntar-se à peleja, sendo o primeiro derrubando violentamente por um golpe fulminante da espada dentada. Com um simples toque de sua mão esquerda, Jacques Bonhomme derrubou o cavalo de Christofor no chão.

Mas um segundo golpe da arma de Jacques e desta vez era Chlodomerus quem era derrubado no chão lamacento. Com um simples gesto, o guerreiro da armadura azinhavre fez com que as espadas de seus três oponentes partissem em vários pedaços.

— Magia Infernal, és um servo de Lúcifer!!! — vociferou um dos padres, ao perceber o que acontecia.

Os olhos do cavaleiro pareciam agora brilhar no escuro, e seus três inimigos jaziam agora inconscientes no chão. Ele havia apeado da montaria e caminhava rapidamente no encalço dos clérigos.

— Lacaio do Demônio Cornudo!!!! — gritou Polycarp, quando sentiu sua perna agarrada pela manopla metálica do soldado.

— Soldados Imaculados, nos defendam!!! — bradou Arnoulf para as crianças, que estavam amontoadas na pequena gruta, a salvo da tempestade.

— Não sou lacaio de ninguém, cura! Nem dos sarracenos, nem do Pontífice, nem tampouco de normandos, germânicos ou bizantinos.

Os dois religiosos foram derrubados com facilidade no barro molhado, e sentiram a morte iminente e inevitável quando Jacques brandiu sua arma dentada.

— Ó Pai... — murmuraram.

O golpe foi veloz como um relâmpago.

Os dois caíram na lama suja do charco.

Um silêncio profundo pareceu cobrir o terreno.

As crianças estavam abraçadas e encolhidas. Os três nobres caídos, à distância.

Foi quando Arnoulf passou as mãos lentamente pela barriga, procurando pelo sangue do ferimento.

Apenas um mínimo filete de sangue escorria dos braços dele e de seu colega Polycarp.

— Como pode... gaguejaram...

— Não sou um assassino. Estive nas Cruzadas disposto a massacrar qualquer um que ousasse ser meu inimigo, mas acabei confrontando-me com antiqüíssimos mistérios, e voltei purificado de meus antigos vícios. Agora, pertenço a missões mais elevadas do que matar e ceifar vidas. Por isso preservo minha armadura e armas em estado permanente de corrosão. Para mostrar a mim mesmo que minhas honras de soldado mundando não passam de reles casca.

— Não vai matar-nos?

— Apesar do profundo desprezo que tenho pelo que vós fizestes àquelas crianças inocentes, eu aprendi que não existe maldade no Mundo — embainhou a espada.

— Apenas ignorância.

Ele fez um gesto, e tanto padres como cavaleiros caíram num estado do mais profundo torpor.

“Quando todos acordarem, já estarei longe daqui, e as crianças serão levadas a local seguro”, pensou Jaques Bonhomme, enquanto estendia a mão para uma garotinha de uns oito anos de idade. Não havia nenhum sorriso no semblante do soldado, mas sentia-se satisfeito com o sucesso de sua intervenção.

— Vamos embora. Que os pequenos guerreiros voltem a ser apenas... crianças.


SOLDADOS DE DEUS foi escrito por Simoes Lopes

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