quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Rebelião 28: Contando Anjos


O apartamento era muitosimples, apesar de bem cuidado. Os móveis eram poucos e envelhecidos. As janelas de vidro fumê estavam rachadas, e a sala apertada era iluminada por uma grande e solitária vela vermelha, apoiada num antiqüíssimo castiçal branco.

Uma bíblia grande e pesada ocupava a mesa no centro. Na capa de couro estava gravada o símbolo da Ordem de São Jorge, um sinuoso dragão verde-escuro trespassado por uma branquíssima lança de prata.

Dois homens esperavam pacientemente sentados num sofá cheirando a naftalina. Preguiçosamente acomodados no carpete macio, dois pequineses de pêlo cor de canela os fitavam com seus olhos redondos. Na parede estava pendurado um enorme quadro inacabado, onde uma multidão de anjos cor de sangue voava por entre nuvens azuladas.

A dupla era formada por Baldovino Castello, um italiano bem alto e esbelto, com cabelos e barba de um negro intenso, óculos de aro bem fino. Era um teólogo de grande prestígio no Vaticano. Seu amigo chamava-se Bertrand Dreyfus, nascera em alguma minúscula vila na fronteira entre França e Alemanha, era atarracado e robusto, com espessas sombrancelhas ruivas contrastando com a careca reluzente.

— O tenebroso dragão envolve o mundo em seus torpes anéis — primeiro ouviram apenas a voz fina, mas possante, pronunciando as palavras lentamente num latim perfeito.

— A lança branca como a lua ainda perfura a besta abissal — respondeu Bertrand, ao mesmo tempo que se erguia respeitosamente, junto com Baldovino.

Um velho de barbas brancas chegou mais perto da luz da vela. Seu rosto era enrugado e cheio de cicatrizes. Os olhos verdes já estavam meio embaçados, mas ele não parecia ter dificuldade para caminhar.

— A lança que perfura o dragão está em nossas mãos! — gritaram os três ao mesmo tempo.

— O Templo do Rio de Janeiro agradece à chegada dos irmãos Jórgios — disse o ancião, curvando a cabeça.

Frater Lunus, este é o guerreiro Baldovino Castello, nosso irmão-em-armas — disse o sorridente Bertrand, apressando-se em fazer as apresentações.

O velho sorriu em retribuição. — Há muito ouço falar de tua grande inteligência e perspicácia, meu irmão italiano!

— Viajei muitas léguas para finalmente estar na presença de um Mestre — falou com a voz baixa o emocionado teólogo, beijando respeitosamente a mão de Lunus.

Frater Lunus, ou, como era seu nome de batismo, Plínio Neiva, tinha 102 anos de idade, e não era o mais velhos dos 30 Mestres que compunham a Triginta, o restrito círculo de anciãos que eram responsáveis pela organização da Sagrada Ordem de São Jorge. Cada Mestre cuidava de um Templo, e Frater Lunus era o guardião do Templo do Rio de Janeiro, que consistia precisamente em sua casa. Quando os Jórgios surgiram no século XV, a partir de uma ramificação dos Templários, estavam conscientes de que construir templos e mosteiros não os tornaria mais poderosos. O demônio — segundo acreditavam — mandava no mundo, e tinha tantos lacaios espalhados pelos quatro cantos da Terra, que podia comprar a tudo e a todos. Assim a Sagrada Ordem dedicou-se muito mais a edificação de seus homens, e não de suas sedes.

— Soube que esteves em São Dimas recentemente, não? — perguntou Lunus, demonstrando simpatia. Segurava uma grande caneca de vinho na mão esquerda.

— Sim, estabeleci bons laços de amizade com o padre Bonfim — explicou Baldovino.

— Também sei que não chegaste sozinho...

— Ora, o irmão está muito bem informado! — exclamou o italiano, surpreendido pelo ancião.

— A vida de um Mestre é muito monótona, irmão. Preenchemos nosso tempo a estudar. A estudar o mundo e os homens, os ouvidos sempre a escutar, os olhos a enxergar.

Subordinada ao colégio de 30 Mestres estava uma rede de congregados que eram chamados de “guerreiros”. Sua missão era guerrear eternamente contra o Dragão que espalhava seu veneno pelo mundo dos homens. Guerrear como seu patrono São Jorge. Eram homens como Dreyfus e Castello, que ocupavam posições as mais variadas na sociedade, mas que escondiam um alter ego oculto, como soldados da dita Ordem.

— Meus irmãos devem estar famintos, vou buscar imediatamente algo para vosso desjejum. Permitam-me ir até a cozinha.

Assim que o ancião ausentou-se, Castello confessou suas aflições a seu companheiro franco-alemão.

— Não é perigoso que um Mestre viva assim? Sozinho, não deveríamos destacar guerreiros para protegê-lo?

Dreyfus não demonstrou preocupação com as dúvidas de seu colega italiano.

— Eu lhe garanto, Irmão, o Mestre sabe se defender muito bem.

— Mas e se nossos inimigos atacarem? E se... — insistiu o teólogo, insatisfeito com a resposta.

— Vê aquele quadro? A cada anjo pintado nele corresponde um inimigo que tentou invadir o Templo. Aprecie a pintura e verás quantos invasores foram derrotados e eliminados.

E assim Baldovino Castello compreendeu porque a pintura estava inacabada. Começou silenciosamente a contar os anjos pintados na tela. Já passara dos vinte, quando sua concentração foi interrompida pelo retorno de Frater Lunus. Trazia uma bandeja metálica com vários pãezinhos escuros e cubos de queijo branco.

— A propósito... — começou a frase enquanto deixava a bandeja sobre a mesa — ... vós fostes seguidos até aqui.

Os dois amigos se levantaram imediatamente, seus semblantes ficaram fechados, seus músculos tensos.

— Não há razão para o pânico. A ameaça foi eliminada. Sirvam-se, por favor, os pães são requentados, mas ainda estão muito saborosos.

Dreyfus se aproximou da vasilha com os pães. Castello sentou de novo no sofá.

O ancião voltou a encher a caneca, e por um breve momento ficou parado em silêncio, analisando seu quadro.

— Terei que pintar mais um anjo... vejamos... aonde devo colocá-lo?

CONTANDO ANJOS foi escrito por Simoes Lopes
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