quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Maytréia 14: Nada Pessoal


Era apenas negócio, nada pessoal.

Você tinha a velha desculpa: se não fizesse, alguém faria. Além do mais, tinha contas a pagar como todo mundo. Seu pai ensinou-lhe sempre que se não fosse esperto, seria engolido por outros mais espertos. Você se lembra de como seu pai mostrava os animais caçadores atacando suas presas e dizia: “Assim é a vida: alguém caça e alguém é caçado. Saiba de que lado está!”

Seu irmão não aceitou as idéias do pai. Afirmava que o mundo humano tinha regras diferentes, regras estas que eram criadas pelo próprio homem e que – portanto – poderiam ser mais justas. Para o tolo do seu irmão, não era necessário tanto sofrimento. Mas eram irmãos. Brigavam juntos quando algo acontecia na rua ou na escola. Faziam planos de como seriam quando crescessem.

Mas a realidade aconteceu.

Enquanto seu irmão se tornou um simples funcionário público, que não faria diferença nenhuma para o mundo (ou, pelo menos, assim achava) você tornou-se um homem de negócios. Enquanto seu irmão ganhava seu minguado salário, você fazia economias cada vez maiores. Enquanto seu irmão tinha um grupo seleto de amigos que pareciam não fazer a menor diferença, você tinha alguns dos contatos políticos e econômicos dos mais importantes. Seu irmão se tornou Agente Administrativo numa repartição pública qualquer, você era um influente homem no ramo de turismo.

O fato de participar de uma máfia para o tráfico de escravas brancas era apenas detalhe.

Os anos passaram e vocês se afastaram. Não apenas ideologicamente, mas fisicamente também. O que eram constantes visitas, se tornaram encontros apenas em festas e eventos especiais e logo eram apenas ligações para desejar feliz natal ou feliz aniversário. Você somente ouvia falar do irmão através de alguns amigos em comum de infância ou algo parecido. Soube que ele andou se envolvendo em estudos de misticismo, o que achou uma tremenda besteira. Assim a coisa estava quando este apareceu para uma visita inesperada.

Você ficou feliz e convidou o irmão para almoçar por sua conta em um dos hotéis com os quais tinha algum “acordo”. Mas o almoço foi bem desagradável. Seu irmão lhe informou de que sabia de sua constante participação na remessa de garotas para a Europa, Israel e Extremo Oriente com a promessa de trabalhos e grandes salários. Ele também sabia que estas garotas tinham o passaporte apreendido assim que chegavam e eram obrigadas a se prostituir ou vendidas para outros exploradores. Informou ainda como sabia que elas tinham – em média – uma duração de cinco anos neste tipo de vida e que a maioria morria ou enlouquecia com os maus tratos.

Isso irritou você. Foi um erro, claro. Eram apenas negócios e você poderia ter usado deste argumento para conversar com seu irmão, mas mesmo assim você se irritou. Jogou na cara dele que vivia uma vidinha miserável enquanto você tinha todo o luxo e conforto que o pai lhes ensinou que alguém que soubesse verdadeiramente viver tinha. Que se o seu pai estivesse vivo teria orgulho de você e vergonha dele. Ele ouviu tudo com uma triste resignação, apenas soltando um sorriso irônico quando a morte de seu pai foi trazida a baila. Dane-se. Ele nunca gostou do pai mesmo. Você sempre gostou de seu irmão e sabe que ele gosta de você, mas não pôde evitar a raiva; quem ele pensa que é para recriminá-lo assim? Não vê que não é nada pessoal?

Antes de se despedir, seu irmão lhe pediu mais uma vez que largasse tudo enquanto ainda era tempo. Você retrucou ironicamente, convidando-o a conhecer melhor o que fazia e mostrar que essas garotas nunca teriam uma chance real na vida e acabariam por se prostituir cedo ou tarde. Aquilo magoou de verdade o seu irmão e foi fácil de perceber no seu olhar. Ele resolveu ir embora e você teve que dar o aviso: “Não se meta, “maninho”... e será o melhor para você.” Ele entendeu o recado e agora você se pergunta se ele entendeu também que não era nada pessoal, apenas negócios. Você tinha que avisa-lo.

Uma semana depois, você estava assinando um contrato com Débora (é claro que este deve ser um nome falso). As promessas eram as de sempre: emprego, curso da língua local, moradia... bom, de certa forma elas sempre recebiam tudo isso; você nunca achou que estaria mentindo.

Mas a tal de “Débora” enganou você e a sua turma direitinho. Você ainda tenta entender como isso foi possível. Residência humilde, família pobre, linguajar e expressão corporal de mulher de vida modesta... como adivinhar que ela era uma agente infiltrada? Foi um excelente trabalho, você deve admitir. Um verdadeiro truque de mágica.

Quando a polícia invadiu o lugar e a garota ingênua revelou sua verdadeira identidade, houve uma tentativa de reação. Mas a maldita da sua arma resolveu engasgar justamente quando você ia atirar na vagabunda pelas costas. Nesse momento, sua memória fica confusa. Talvez tenha sido o fato dele aparecer uma semana antes de tudo ruir, talvez seja o fato dele lhe visitar sempre; mas você pode jurar que viu seu irmão apontando para você antes da arma engasgar e que ele alertou a tal da “Débora”. Mas é claro que isso não pode ser provado. Além disso, seria ridículo imaginar seu irmão – o funcionariozinho público samaritano – ajudando numa ação de verdade.

O que se lembra bem é do tiro dela atravessando seu crânio. O resto é escuridão.

Você está tetraplégico. Seu irmão vem visitá-lo toda semana. Você gostaria de perguntar como ele o achou no sanatório, mas infelizmente se encontra incomunicável. Seu corpo não responde a nenhum movimento voluntário. Você, que aprisionou tantas mulheres e as tirou do direito de ter domínio sobre o próprio corpo, agora tem o seu paralisado como castigo.

A cada visita, seu irmão fala de coisas sem o menor sentido, como kharma e dharma, ação e reação, sobre o que a humanidade tem de melhor e como isso vem sendo abafado. Uma vez ele tentou te explicar que somos todos Doutrinados e vivemos numa realidade ilusória. Você sabe que esse papo é por causa dos estudos místicos dele, que ele está querendo o melhor para você. Mas isso não o convence... não é nada pessoal, mas não convence mesmo.

Mas há um detalhe muito especial que lhe tortura profundamente. Quando você aprendeu com seu pai a arte de explorar as mulheres e herdou os negócios da família seu irmão sumiu e não queria mais voltar. Mesmo quando soube da morte dele cerca de um ano depois, seu irmão se recusou a ir ao enterro. Você sempre achou que era por causa da rejeição de seu pai para com ele, mas recentemente algo o fez pensar melhor. O caixão desceu lacrado, tendo em vista as condições em que ele teria morrido. Você pensa agora (pois tempo para pensar é o que não falta) que deveria ter exigido que abrissem o caixão.

Numa determinada visita seu irmão trouxe um homem mais velho, no mesmo estado que você e desde então ele sempre faz isso. Alimenta você, conversa com você, pega na sua mão e tenta ser carinhoso. E faz exatamente o mesmo com o outro homem. No início você simplesmente quis se recusar a entender o que aquele homem representa, mas então notou a cor de seus olhos e os traços do rosto – mesmo que deformados pela velhice e pela imobilidade – eram os traços de um rosto conhecido. Seu irmão tinha finalmente a reunião de família que sempre quis, sem que seu pai o recriminasse por isso. Você sabe que a dor e a raiva que sente com relação a isso não muda nada. Sabe também que se seu irmão pudesse faria as coisas acontecerem de outra forma. E ele sempre fala que não pretende torturar ou punir vocês, mas apenas espera que vocês aprendam. Ele diz ser este o seu dever, que não faz isso por mal. Isso você entende.

Afinal de contas, não é nada pessoal.

NADA PESSOAL foi escrito por Danilo Faria

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