quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Maytréia 18: Ajuda

Vou matar essa vagabunda!

Carlos avançou sobre a mulher, desferindo-lhe uma bofetada ouvida pelos vizinhos no andar debaixo. Ninguém se atrevia a subir; todos conheciam o casal e seu modo peculiar de passar o tempo em que ficavam juntos em casa.

A força do golpe jogou Luana sobre a mesa, deixando cair no chão a faca que segurava. Sem se deixar abater pelo líquido quente que escorria pelos lábios recém-cortados, lançou sobre o marido o vaso que ali servia como adorno. O objeto – que de outra forma se despedaçaria no rosto de Carlos – atingiu a parede atrás dele graças a um surpreendente movimento de quadril. Surpreendente porque o homem tropeçava tanto em suas próprias pernas que só por um milagre ainda se mantinha de pé.

— Filho da puta! — a voz de Luana era mais cortante que os cacos do vaso espalhados pelo chão — Você nunca mais encosta em mim.

A mulher trancou-se no quarto, correndo na frente do marido, feito nada difícil tendo em vista o estado dele, facilmente perceptível pelo hálito carregado do líquido ígneo que ingerira há pouco.

Esmurrou e chutou a porta, criando alarde maior no edifício, mas a porta resistia. Escutava do lado de fora o som de Luana abrindo o armário e as gavetas, provavelmente lançando roupas numa mala.

Ela só sai daqui morta. A imagem de um instrumento prateado invadiu sua mente. No porta-luvas do carro, estacionado na frente do edifício. Ele era policial, mas não entrava com a arma em casa. Não depois que passou a desconfiar da mulher e a tomar umas cachaças “para clarear as idéias”. Pensava que a proximidade da pistola podia causar uma desgraça, em uma de suas brigas constantes.

Mas não pensava mais. Seu cérebro, como uma esponja boiando numa piscina repleta de 51, se recusava a frear os instintos animais que o dominavam. Desceu se escorando nos corrimãos os quatro andares, sentindo-se observado pelas frestas das portas.

Eles que não se metam, senão mato todo mundo nessa porra.

Ao sair à rua e abrir o porta-luvas, a visão da Taurus carregada o fez abrir um sorriso. Devido à posição, curvado sobre os bancos e com metade do corpo para fora do carro, o maço de cigarros caiu no bolso da camisa e o distraiu. Escutou um ruído de terra sendo remoída ao lado do veículo. Talvez pela necessidade de nicotina ou pela curiosidade gerada pelo barulho, fechou o porta-luvas e acendeu um cigarro. Sua esposa não tinha como fugir.

O ruído era proveniente do trabalho de uma velha descalça, suja da cabeça aos pés. Somente ao observar a roupa encharcada da mendiga foi que Carlos se deu conta das poças espalhadas pela rua e de como devia ter chovido alguns momentos atrás. A velha introduzia a mão nua em um bueiro e retirava a terra preta e mal-cheirosa misturada com detritos que o entupia. Com aquela sujeira fazia montinhos junto ao meio-fio, catando ainda as folhas e papéis que sujavam a calçada. Outros dez montinhos já haviam sido feitos, e a calçada, nesses pontos, encontrava-se completamente limpa, apesar da enxurrada de há pouco.

— Ela está fazendo isso desde as quatro horas —atreveu-se a dizer pela janela um garoto que morava no primeiro andar, antes de ser puxado com força pela mãe, que sem olhar para fora cerrou o batente.

Carlos olhou o relógio: meia-noite e meia. Como tem gente maluca nesse mundo. Virou novamente para o veículo, o cigarro quase no fim, o brilho vermelho novamente lhe assaltando os olhos. Foi então que percebeu, de soslaio, um detalhe estranho: as unhas da velha. Era policial há muito tempo e sabia muito bem que uma mendiga não poderia ter as unhas tão bem pintadas como as dela. Era claro que não estava há muito nas ruas – no máximo dois dias. Devia ser um caso de perda de memória. Talvez a família estivesse procurando. E daí? Não é problema meu.

Ele acendeu outro cigarro. Sentiu-se estranhamente sóbrio.

Acercou-se da velha e puxou assunto; ela realmente estava biruta, não falava coisa com coisa, mas lembrava do nome. E do nome todo.

Meu nome é Luzia da Silva Souza Brandão.

— Mas onde você mora, dona Luzia?

A velha demorou a responder, os olhos opacos e fixos. Olhos de uma boneca.

— Eu... sou da roça, meu filho, trabalhei muito com essas mãos ... minhas sobrinhas são professoras... eu sei cuidar de milho... o cachorro também fui eu que...

— Dona Luzia, o que quero saber é onde mora...

Mas não adiantava. Ela não dava qualquer endereço, seja dela ou de parente, número de telefone ou nada. Apenas recitava um monte de baboseiras sem nexo. Para testar, o rapaz perguntou várias vezes o nome dela. Pelo menos nesse dado ela parecia segura.

Luana saiu do prédio, uma enorme mala nas mãos. Carlos havia sentado com a velha, que se mostrava totalmente dócil, nuns blocos de concreto que havia na rua. Talvez a estranheza de ver seu marido sentado na calçada com uma velha mendiga tenha suplantado sua raiva, porque Luana se aproximou com a face marcada de dúvidas.

Carlos puxou o celular e fez sinal para que a mulher conversasse com a velha. Falou com um colega de trabalho, pedindo dados sobre o nome Luzia da Silva Souza Brandão.

Enquanto isso, Luana tentava arrancar informações da velha, tendo o mesmo sucesso que Carlos: nenhum. Este desligou o telefone e ambos dialogaram sobre o que fazer. Começava a chover levemente. A mala, Luana colocou no bagageiro do carro. A madrugada avançava e um deles lembrou-se de uma emergência psiquiátrica num hospital Municipal. Colocaram dona Luzia no banco de trás do veículo. Ela estava um pouco mais apresentável, pois haviam lhe arranjado calçado – um chinelo velho de Carlos – e uma blusa bem larga. Luana ajudou a trocar a roupa molhada. A velha não abandonava, no entanto, o olhar perdido. Assim que se acomodou no veículo, adormeceu.

O casal sentou na frente e Carlos dirigiu até o hospital. A médica de plantão estava relutante em aceitar Luzia; disse não se tratar de uma emergência médica e que o hospital estava lotado; duas notas de cinqüenta, no entanto, fizeram surgir vaga e a promessa de que o serviço social, no dia seguinte, encaminharia a velha para um asilo. Quando Carlos e Luana saíram, ela já estava dormindo numa maca, medicada e completamente seca.

­— O gesto de vocês foi muito bonito — comentou o segurança. — é difícil ver disso aqui. Ninguém ajuda ninguém hoje em dia.

O casal sorriu e andou devagar até o carro. Não foi possível discernir de quem partiu o gesto, mas logo estavam de mãos dadas. Daí para o abraço e pedidos de perdão misturados com lágrimas foi um pulo. A mala com a roupa estava esquecida no bagageiro do carro, enquanto o tempo parava de correr para o homem e mulher que se acariciavam.

— Eu nunca mais vou beber... — prometia Carlos, quando foi interrompido pelo toque insistente do celular. Num meio sorriso, ele quase se desculpou por ter que atender.

Era o tal colega de trabalho. Ele havia conseguido informações sobre Luzia e estava muito agitado. Quando terminou de falar, foi à vez de Carlos fraquejar, deixando o celular cair de sua mão trêmula.

Luana lutou para retirar dele alguma explicação. Após muita insistência ele disse algo, porém em voz de falsete, como que para si mesmo:

— Sabe a pesquisa sobre Luzia da Silva Souza Brandão? Meu amigo está com a certidão de óbito dela nas mãos. Ela está morta, Luana, morta!

*************

Uma senhora aparentando 60 anos saiu andando do Hospital Municipal. Não tinha mais o passo vacilante que entrou, muito menos os olhos imóveis. Agora eram duas bolas de vivacidade, duas esferas relampejantes que denotavam a sabedoria supostamente armazenada no órgão atrás deles. A médica nem o segurança notaram sua passagem; só o fariam se ela quisesse. Permitiu-se apenas um sorriso ao ver o casal se beijando no estacionamento. Estava com muita pressa.

Afinal, ainda havia muita gente para ser ajudada...

AJUDA foi escrito por Andre Esteves

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