domingo, 27 de janeiro de 2008

Rebelião 71: Filho do Trovão

Um vento muito frio sacode as montanhas, fazendo as negras silhuetas dos imponentes pinheiros quase tremularem. Na laje fria da cozinha rústica, os pobres, doentes e mendigos se amontoam para chegar mais cedo à sopa quente e borbulhante que escorre da enorme panela de barro. Os frades acolhem os necessitados com carinho, e um deles mergulha a enorme concha no caldo substancioso de carne, legumes e grãos cozidos. Não muito longe dali, um religioso está parado junto ao parapeito da ampla janela, observando a neve que fustiga o vilarejo ao sopé do monte.

— Irmão, a comida já está pronta como pediste, o Irmão Nepomucen cuidará dos desabrigados e eu ficarei alguns minutos rezando na capela — informou o noviço Valeriu ao idoso monge que parecia ter os olhos negros perdidos na tempestade que rugia lá fora.

— Obrigado, Irmão, também vou recolher-me. Está muito tarde para um velho como eu ficar perambulando — respondeu o Irmão Ion-Iacob, enquanto escondia as mãos por dentro das grandes mangas do hábito.

O velho, cujo rosto enrugado era marcado pelo contraste entre o branco da longuíssima barba e o negro das espessas sombrancelhas, caminhou vagarosamente pelo corredor escuro do mosteiro. As passadas eram largas, ainda que sem aparente pressa. Ion-Iacob era o mais antigo dos frades no Mosteiro de Santa Catarina de Siena, situado num ponto esquecido das montanhas da Transilvânia. Talvez fosse o único dos monges a ter nascido naquela região, e todos tinham um grande respeito por aquele simpático e bonachão ancião de 92 anos.

O frei ainda teve que suportar alguns minutos de frio intenso e úmido antes de chegar até a sua modesta e simples cela. Olhou à sua volta, fazendo uma série de gestos não muito bem definidos, e fechou a pesada porta de madeira.

Acendeu uma vela bem grande que ficava em sua mesinha, e uma luz débil banhou o pequeno cômodo. Encostou um dos dedos na chama, cerrou os olhos num ar solene, e o então pálido brilho do fogo tornou-se um radiante candeeiro, tão luminoso quanto umas cem velas. À medida que uma aura azulada parecia banhar os móveis do quarto, a fisionomia severa do ancião começou a se transformar, lentamente.

Rugas foram desaparecendo, a barba escurecia mais a cada segundo, e a postura curvada e cansada foi dando lugar a uma aparência jovem e revigorada. Quando a transformação chegou ao fim, Ion-Iacob havia tornado-se um rapaz de vinte e poucos anos.

Todos no mosteiro pensavam que aquele frade fosse um idoso senhor de quase cem anos. As aparências enganam.

De fato, Ion-Iacob nascera comprovadamente em 1916, um filho indesejado da solteirona Claudia Irinel, e seu nome de batismo era Nicolae Irinel.

Com menos de um ano de vida, fora abandonado no mosteiro, onde passou toda a infância.

Aos doze anos de idade, descobriu que era diferente das outras pessoas. Incrivelmente diferente. Fugiu.

Em sua fuga, passou fome e frio, enfrentou as mazelas das guerras que assolavam o continente. Vagou sem rumo por um mundo enlouquecido onde todos se odiavam, acabou cativo e moribundo numa prisão infecta. Numa noite de tempestade, quando os raios cortavam o céu cor de chumbo, e o trovejar era tão alto que ele não podia dormir, ele pensou ter visto um anjo. A luz que emanava de suas vestes atravessa a estreita janela gradeada e parecia banhá-lo num estranho ritual de purificação. O anjo tinha as barbas de um ser tão velho quanto o tempo, e suas asas pareciam tecidas com a mais viva eletricidade.

Foi quando Nicolae descobriu quem realmente era.

Quando o carcereiro chegou na manhã seguinte, a cela estava vazia, sem nenhum sinal de arrombamento. Jamais se soube como aquele maltrapilho escapara de seu cativeiro.

Deixando que a luz dos relâmpagos o guiasse, ele chegou a Amidaela. O simplório rapaz da Transilvânia ficou um pouco confuso quando aquela bela moça africana revelou ser sua irmã. Mas o véu que cobrira sua vida estava finalmente sendo desvelado, e em breve ele já estava ciente que havia outros como ele.

Aprendeu a controlar seus incríveis poderes que tornavam mais que um simples humano.

E finalmente compreendeu que sua vida estava condicionada a uma importante missão.

Aos dezenove anos, retornou ao mesmo mosteiro onde crescera, e tornou-se um monge recluso. A partir daquele instante, nascia o Irmão Ion-Iacob. Mas, ao mesmo tempo, guardava em segredo seu verdadeiro nome, aquele que recebera de seus verdadeiros irmãos: Boanerges.

Boanerges, “Filho do Trovão”, o apelido que Jesus dera aos irmãos João e Tiago, filhos de Zebedeu. João e Tiago, em romeno, Ion e Iacob, que vieram a compor seu nome monástico, numa sutil homenagem.

O mosteiro recebe muitos visitantes, mas quando estes aproximam-se daquele velho religioso e pronunciam a senha “Foi escrito pelo Filho do Trovão”, ele sabe que não é o Irmão Ion-Iacob a quem procuram, mas sim a Boanerges, o Visionário, o primeiro de todos os Escribas da Linhagem Fúlgida. Foi ele que escreveu sozinho em algumas noites o Index Manifestorum Primus, a primeira compilação classificatória dos diversos poderes que constituem a herança dos Filhos Híbridos dos Anjos Rebeldes. Tudo o que os outros Escribas desenvolveram a partir daí, têm sua fonte primeva na obra fundamental de Boanerges.

Boanerges como todos os Nefilim, é virtualmente imortal e possuem o dom inato de Bachor, a juventude eterna. Contudo, Boanerges, como um dos mais antigos Visionários, preferiu mascarar sua existência simulando um envelhecimento místico, que ele consegue com seus poderes. Manter uma aparência envelhecida compatível com sua idade biológica requer um grande domínio dos poderes. Algo que Boanerges, o Maior dos Escribas, sem dúvida conhece muito bem.

A luz forte que emana das chamas sobrenaturais provoca reflexos ondulantes nas paredes de alvenaria, e permite que o Visionário observe as suas últimas anotações nas folhas encadernadas. O lápis de traço forte corre rapidamente pelo papel delineando esquemas, símbolos e fórmulas. Algumas páginas com teorias incompletas e hipóteses refutáveis são arrancadas sem pena. Boanerges procura uma nova formulação para os limites do Hálito de Moloch, e compara com alguns dados enviados há algum tempo por sua pupila Rapunzel. Fortes indícios de um novo manifesto merecem melhor investigação.

Um raio corta o céu, e um estranho barulho desperta o idoso de aparência jovem de seus estudos. Por entre as persianas de madeira, um exausto morcego bate suas asas sofregamente. Boanerges imediatamente percebe que algo sobrenatural ronda o inesperado animal.

Em uma de suas patas, amarrado com esmero, um tubo contendo um pequeno bilhete enrolado. É evidente que aquele animal não seria capaz de viajar tanto sem uma ajuda “mística”. O precavido nefilim aguça seus sentidos, toda cautela é pouca. Inimigos podem estar por trás disso.

Mais tranqüilo após fazer um detalhado rastreamento, e perceber que não há entidades presentes no local, ele desenrola o bilhete.

Nada escrito.

Ele observa as bordas do papel com atenção. O padrão de minúsculos cortes é incofundível.

A carta é aproximada da vela ritualística.

O texto começa a aparecer, reagindo ao brilho da chama na forma de caracteres especiais. Boanerges gosta de chamar este alfabeto de Scripta Alba, uma utilíssima invenção da Escriba Veturia.

O conteúdo da carta agora pode ser decifrado:

FOI ESCRITO PELO FILHO DO TROVÃO

É o que diz a primeira linha da mensagem. Já basta.

RUDRAH MORTO, STELLA MARIS NO CÉU, GÜNTER SUMIU, BENITA ATACADA. RAPUNZEL ESPERA PELO MESTRE.

Um último glifo estilizado marcava a assinatura: a mensagem fora enviada por Abrasax, mais um Escriba dos Visionários.

“Stella Maris no Céu”, dizia o texto, ou seja, ela havia ascendido para tornar-se um Paradisio. Todos os citados eram Escribas, e sem dúvida Rapunzel guardava muito mais para ser dito.

Por mais de sessenta anos ele ficou recluso neste mosteiro, ajudando a seus companheiros Escribas por meio de cartas e visitas. Mas agora era tempo de sair da tão duradoura reclusão.

Já era madrugada quando um jovem frei deixou os portões do mosteiro de Santa Catarina de Siena. Ninguém estava acordado para presenciar aquela “fuga”, e de qualquer forma ninguém no local reconheceria naquele rapaz de cabelos pretos o bondoso e velho Irmão Ion-Iacob.

Num bolso da pesada vestimenta, ele carregava um animalzinho alado, previamente reanimado pelos poderes nefílicos. Tamanho esforço não merecia ficar sem recompensa. Na primeira oportunidade, o frágil morcego seria levado de volta a seu habitat original. Mas primeiro era preciso vencer a longa caminhada pela encosta nevada.

Não mais Nicolae, não mais Ion-Iacob, era agora Boanerges quem trilhava o caminho. Por toda a sua vida, devotara-se a entender e elucidar os misteriosos poderes dos Nefilim. Por décadas e décadas os outros Escribas buscaram pela sabedoria e conhecimento do Escriba Boanerges.

Rapunzel e Abrasax foram alguns dos melhores alunos do velho Visionário. Mas agora eles deixavam claro que não iriam até o mestre, mas que esperavam por ele.

E Boanerges partiu, em busca de seus companheiros.



FILHO DO TROVÃO foi escrito por Simões Lopes

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