Tique.
Taque.
O pesado relógio de parede bate sem parar, seus ponteiros marcando 3:12 da madrugada. Meu coração pulsa num ritmo que agora parece infinitamente mais acelerado. A fome que me consome é imensa, já comi tudo o que havia na geladeira, e agora procuro sofregamente na despensa mais alguma coisa. Provavelmente deve ser o efeito da Gula — Agathe havia me alertado sobre isso. Manter o equilíbrio sempre foi muito difícil para mim, e foi ela, Agathe Leandridis, a Visionária, a responsável por me salvar do descontrole por diversas vezes. Eu era ainda criança quando nos conhecemos, e inegavelmente aprendi muito com ela.
Tique.
Taque.
Tudo começou naquela tarde chuvosa de anteontem, quando acordei exausto, após um sangrento combate com uma Sheilim. Por um simples golpe da sorte, escapei da morte certa, e a maldita vagabunda dos infernos acabou fugindo ilesa. Dormi por ininterruptas 32 horas, o que me parecia simplesmente um efeito da queima excessiva de maná ao curar minhas feridas. Mas agora, sinto que era o espectro da Queda rondando... envolvendo-me em suas tentações pecaminosas.
Tique.
Taque.
Eu tento não ligar para o tinido irritante do relógio, mas não consigo tirar o maldito barulho da mente, preciso pensar em outra coisa. A imagem de Agathe mais uma vez me vem à cabeça, e penso em seus cabelos negros e encaracolados. Ela não me procurou mais, temo que algo de pior tenha acontecido a ela. Ela jamais abandonou os amigos. Penso em seus maravilhosos olhos verdes, em seu corpo perfeito. Fico excitado, e penso em como seria maravilhoso vê-la inteiramente nua. Minhas mãos passeando por suas coxas carnudas. Beijá-la. Possuí-la. Ela aprovaria?
Tique.
Taque.
Não, ela não aprovaria. É claro que não. Mas eu a tomaria à força, e ela sentiria toda a intensidade de meu amor. O que estou dizendo? Como posso pensar em Agathe desta forma? Isso... não... está certo. Não pode... Sentimentos confusos... Sinto que meu corpo está entregue a impulsos selvagens de forma cada vez mais descontrolada. É preciso deter a loucura.
Tique.
Taque.
Tique.
Taque.
A imagem do estupro de Agathe não sai de minha mente, e remôo cada detalhe mais uma vez. Não posso estar desejando... Um calafrio percorre minha espinha quando algo me ocorre. Não são desejos represados... são lembranças!!! Sim, maldito seja eu, eu violentei minha melhor amiga, eu fiz isso, sim! Ou não?! Lembranças confusas.... por um momento, eu gostaria de ter o autocontrole de Agathe, sua nobreza, sua inteligência. Por que eu não consigo ser assim!!! Por que jamais pude aprender com Agathe?!!!
Tique.
Taque.
Tique.
Taque.
Ouço o barulho de um carro estacionar à frente de minha casa. São eles! Só podem ser eles!!! Sim, meus amigos estão aqui para me ajudar a puxar-me para fora deste abismo!
Eu corro até a porta, e passo pelo espelho. Dou passo atrás e olho-me mais uma vez. Eu, Martin Skelter, 22 anos, nascido nas terras geladas do Alaska. Meus olhos azulados, meus cabelos negros e compridos. Alguém assim tão belo não merecia o destino tão cruel... Fico absorto em meu súbito e recém-desperto narcisismo. Ouço alguns passos na entrada, mas sequer penso em atender. Admiro meus belos olhos azuis refletidos e lembro-me de minha infância, quando eu corria livre pelas ruas geladas daquela minúscula cidade de que mal recordo o nome. Recordo-me da imagem etérea de alguns anjos flutuando acima dos galhos dos pinheiros. Entre eles, sei que um deles era meu pai.
Tique.
Taque.
Tento desligar o relógio, mas não lembro mais como funciona o mecanismo.
Tique.
Penso em meu pai. As asas abertas como um gigantesco pássaro, a cabeça imponente com o bico recurvo e os olhos vermelhos parecendo me fuzilar. O porte celestial de tão impressionante criatura. Suas penas brilhavam prateadas à luz do luar.
Eu quero ser tão poderoso quanto Ele.
Não, eu já sou tão poderoso quanto Ele.
E meu poder será muito, mas muito maior ainda.
Taque.
Eu penso nele uma última vez, e ele não me parece mais tão impressionante. Penso em seu corpo disforme e com braços desajeitados, como os de um macaco. O bico recurvo assume um aspecto que prima pela feiúra. As enormes asas resumem-se agora a dois toscos pedaços de membrana esticados sobre ossos pontudos, como se fossem os apêndices de morcego das profundezas do Inferno. Ele continua me olhando com seus olhos vermelhos.
Tique.
Ainda posso ver aquele par de olhos de fogo no espelho. Estou olhando para meu pai?
Taque.
Não. Estou olhando para mim mesmo.
Tique.
Minhas mãos tornam-se garras afiadas, e sinto o calor aumentar embaixo de meus pés.
Golpeio o relógio antes que ele faça mais um de seus malditos barulhos. Com a força de meu golpe, o objeto parte-se ao meio, muitos cacos de vidro fincam-se em minha pele, mas a dor não me incomoda.
Ouço gritos indefinidos. Não consigo identificá-los.
A porta de minha casa é derrubada.
Vejo vultos indefinidos. Um homem de barbas negras grita comigo, enquanto uma mulher de pele morena, aos prantos, fala algo para mim numa língua estranha.
Tique.
Taque.
O relógio, apesar de partido ao meio, ainda insiste em seus últimos acordes. Minha fúria torna-se ainda maior, e eu piso no que restou das engrenagens com toda a minha força. Peças de todos os tamanhos saltam voando por todos os lados.
Não haverá mais tiques e taques.
Minha hora chegou.
Sou atingido por uma descarga elétrica, derrubando-me.
Caído, lanço um breve olhar para aqueles estranhos invasores.
Por um breve momento, penso estar vendo meus amigos de Congregação, Agathe Leandridis e Neal Moore. Agathe está aos prantos.
Tique.
Isto não pára nunca!!!! Pisoteio compulsivamente a sucata metálica até que não reste mais nada inteiro. Ainda espero ouvir por mais um taque.
Mas ele não vêm.
Não... enxergar... Neal ou Agathe ... não entender... apenas barulhos... e sombras.
O calor aumentando... espelho... quebrado... apenas... a imagem... do demônio furioso... dentes salientes... garras de animal... fogo nos olhos.
Estou sozinho.
Eu.
Apenas Eu.
Apenas a Queda.
Tique.
Taque.
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