domingo, 27 de janeiro de 2008

Rebelião 67: Exército de um Homem Só

Uriel Thelin corria pela neve fofa à toda velocidade. A respiração era entrecortada e seu coração pulsava em um ritmo alucinante. À sua frente o lago congelado cobria-se de uma fina camada de gelo. Um barulho forte cortou o ar frio, denunciando a presença de um helicóptero. Atrás dele, um jipe aproximava-se em ritmo acelerado.

O Guerrilheiro sabia que não havia tempo para pausas. Com suprema concentração, invocou a Pele de Meri’im, tornando seu corpo maleável. Dilatando a sola de seus pés descalços, conseguiu manter-se correndo pela superfície de gelo, sem quebrá-lo. O helicóptero deu uma rasante, e no ponto de máxima aproximação, uma saraivada de dardos tranqüilizantes choveu sobre Uriel.

A carga narcótica derrubou-o, com sua forma retornando à original — com isso, a crosta que cobria o lago partiu-se sob o peso do nefilim dinamarquês. Alto e magro, sem pêlos no corpo, trazia runas tatuadas no peito e nos braços. Os olhos grandes e saltados, de cor cinzenta, estavam fixos no horizonte, como se estivesse esperando por algo.

“Onde estão eles?”, pensava Uriel, procurando desesperadamente por sinais que denunciassem a chegada de seus amigos Desiderio Rubicán e Gypsy Queen.

Bastou consumir um pouco de maná para neutralizar o efeito dos dardos, mas a placa de gelo não foi capaz de suportar seu corpo. Caiu na água gelada, afundando como se fosse de chumbo. O jipe, que já estava estacionado nas bordas do lago congelado, despejou uma pequena legião de agentes. Pertenciam às forças paramilitares do Departamento Ômega da R.A.M., e embora agissem de forma ilegal, o grande poderio da mega-empresa permitia-lhes todo o acobertamento necessário.

As várias armas que estavam apontadas na direção de Uriel foram baixadas, quando eles perceberam que seu alvo caíra na água. Sua missão era capturá-lo a todo custo.

Capturá-lo — se possível — vivo.

Do helicóptero saíram duas sondas prateadas, propelidas por alguma espécie de dispositivo eletromagnético. Pairaram por um tempo na atmosfera úmida e gélida, e então mergulharam na fenda aberta no gelo, atrás de sua presa.

Sensores de infravermelho e de movimento varriam as águas escuras em busca do homem submerso. Em menos de três segundos a silhueta térmica dele já aparecia nas telas de rastreamento do helicóptero. Localizar um homem de 1,91m e 36,5°C de temperatura era extremamente simples para artefatos tão sofisticados. A equipe de busca, confortavelmente instalada a bordo da máquina voadora, chegou a ensaiar uma comemoração, mas rapidamente seus gritos viraram expressões de incredulidade, quando aquele mesmo homem simplesmente desapareceu da tela dos sensores.

Consciente de seus poderes, Uriel havia apelado para o manifesto Nadando com as Ondinas a fim de se mesclar ao elemento líqüido. Voltando à tona, viu-se obrigado a assumir mais uma vez sua forma física real. “Chega de esperar por ajuda, eu mesmo dou conta do recado!”, pensava o filho da arqueóloga Megara Thelin. Os soldados da R.A.M. demoraram um pouco a reagir, mas finalmente perceberam o ressurgimento de seu alvo.

O Guerrilheiro nórdico não deu tempo a seus perseguidores: usando a Dispersão do Silfo, transformou seu corpo em ar e fluiu com velocidade na direção do pelotão.

O primeiro dos homens armados foi nocauteado sem sequer perceber de onde vinha o soco.

O segundo, percebendo que Uriel mais uma vez voltara a tornar-se “sólido”, tentou disparar uma rajada de dardos à queima-roupa, mas o nefilim esquivou-se com inteligência, fazendo com que o disparo atingisse o terceiro soldado, que só não foi derrubado por que seu capacete e colete detiveram os projéteis. A vitória só não foi completa porque o último de seus inimigos, que estava mais distante, urrou triunfante quando conseguiu alvejar o Guerrilheiro com uma descarga laser, levando Uriel a cair de joelhos. Mais soldados desceram do jipe, seguidos por seu suposto comandante-de-campo. Armas foram apontadas para o alvo. Uma ordem foi gritada com ênfase: “baixem as armas agora, todos, código verde!”

Os milicianos baixaram a guarda, surpresos pela inesperada atitude de seu superior, que paradoxalmente aparentava estar tão surpreso quanto eles. Ninguém foi capaz de compreender que tratava-se do próprio Uriel Thelin usando magistralmente o Eco de Bala’am, o manifesto que permitia criar ilusões sonoras. Quando o próprio comandante gritou que não havia gritado — o que só contribuiu para aumentar ainda mais a confusão do grupo —, Uriel já havia mais uma vez transformado-se em vento e alcançara o helicóptero pousado. Materializou-se na cabine, cuspiu uma baforada de gás tóxico — o famigerado Hálito de Moloch e conseguiu derrubar todos os agentes da R.A.M. que estavam no veículo. “Será que ainda me lembro como se faz?”, perguntou para si mesmo, quando utilizou-se de suas habilidades inatas como piloto para fazer decolar o aparelho, ao mesmo tempo que arremessava os corpos dos agentes para fora.

“Vamos ver do que você é capaz...”, pensou, enquanto verificava os instrumentos à sua disposição. Deu uma rasante sobre os soldados remanescentes, obrigando-os a atirar-se no chão nevado. Os agentes do Departamento Ômega pareciam hesitantes em atirar no próprio helicóptero, e o seu comandante acionou um dispositivo na pulseira eletrônica.

Uma tecla começou a brilhar no lado esquerdo do console do veículo.

A explosão foi tão forte que iluminou o vale. Pedaços de metal e plástico caíam por toda a parte.

O comandante da operação — Sved Suter era seu nome e seu cargo era o de Coordenador de Operações — respirou aliviado. Sabia que o dispositivo de autodestruição do helicóptero evitaria que ele fosse roubado ou usado por outros. Mas a morte do PPE, como aquele homem era chamado no documento sigiloso expedido pelo Departamento Epsilon, seria um grave golpe para a carreira de Sved. Um dos agentes já estava verificando se o jipe fora danificado por algum dos destroços, e deveria retornar à sua base o mais rápido possível. Felizmente a tecnologia avançada da R.A.M. garantia que os destroços seriam rapidamente consumidos, devido a um sistema de degeneração molecular desenvolvida pelos químicos da Célula 11 do Diretório Europeu. A explosão provavelmente seria notada por alguém, mas não seria tarefa difícil plantar a versão de que um helicóptero da empresa fora atacado por um grupo de ecoterroristas fanáticos. Sved entrou em contato com seu superior imediato no Departamento Alpha, responsável pela Supervisão dos agentes especiais de segurança. A tela de cristal líquido em seu celular mostrou o rosto redondo e avermelhado de Knut Sigfridsen, que pareceu estar enfartando ao ouvir as más notícias. Knut havia garantido aos cientistas do Departamento Epsilon — o departamento responsável pelo estudo dos indivíduos chamados PPE, “Peter Pan Elements”, o nome com o qual os cientistas da R.A.M. chamavam os Nefilim — que bastaria uma pequena unidade de Operadores para executar o serviço, já que o Departamento Omega tinha acesso a ultratecnologia bélica.

“Eu quero cada milímetro de neve varrido! Não parem até encontrar nem que seja uma maldita célula deste maldito cadáver!”, gritou Knut ao celular.

Mais reforços chegaram para ajudar à equipe de Sved em sua infame busca. Apesar da incessante varredura, eles ainda não haviam detectado nenhum vestígio do PPE. Era como se o morto tivesse sido completamente pulverizado.

À uma distância segura, bem longe dali, o suposto “morto” Uriel Thelin observava tudo com atenção redobrada. A seu lado, estavam seus colegas, Desiderio Rubicán, um Guerrilheiro espanhol, vestindo uma jaqueta sem mangas, um boné verde, e uma calça repleta de bolsos e apetrechos; e a Visionária conhecida como Gypsy Queen, nascida em um acampamento cigano na Inglaterra, com compridos cabelos negros e magnéticos olhos azul-escuro, envolta em um felpudo casaco de pele sintética e fumando um cigarrinho de odor penetrante.

— Como você conseguiu escapar da explosão? — perguntava a atônita Gypsy Queen, ainda sem entender direito a história.

— Sorte, pura sorte — enfatizou Uriel, enquanto coçava o ombro.

— “Sorte”, meu caro? — debochou o espanhol Desiderio — Estás falando como um Acólito, agora! — terminou a frase com uma gargalhada bem forte.

— Minha idéia era usar a Dispersão do Silfo, escapar pelo ar, e deixar o helicóptero cair. Logo após eu me desmaterializar, o bicho simplesmente explodiu. Se isso não é sorte, eu não sei dar outra explicação — levantou-se, sacudindo os flocos de neve da roupa. — Aliás, por falar nisso... — ao dizer Uriel olhou para seus dois amigos com uma certa fúria no olhar — porque diabos vocês não me ajudaram se já estavam aqui assistindo à perseguição toda? Pensei que vocês estavam longe!

— Você lutou muito bem para quem estava sozinho, Uri — respondeu o outro Guerrilheiro. — Não queríamos interromper sua performance — pontuou com mais uma gargalhada, sob protestos da amiga, que garantiu que eles iriam interferir se necessário. Uriel acabou perdoando o gesto de seu colega espanhol, afinal de contas, adorou a emoção do combate. Sentia-se muito empolgado.

— Não é engraçado? — falou Desiderio, enquanto olhava o grupo de agentes da R.A.M. perambulando pelo sopé da montanha onde estavam escondidos por entre os arbustos. “O quê?”, quis saber Gypsy Queen, que já estava tremendo de frio

— Por mais tecnologia que eles tenham, os humanos jamais serão páreo para a gente. Jamais! — afirmou o espanhol com convicção.

— Não devemos subestimar a R.A.M., Guerrilheiros, apesar das derrotas, eles estão aprendendo com seus próprios erros. Mais cedo ou mais tarde, vão acabar nos causando sérios problemas.

— Duvido — contestou Uriel, confiante.

— O futuro dirá — disse a cigana, com ares de fim de discussão —, mas agora, por favor, vamos embora daqui? Já estou quase congelando, e a “sorte” pode não durar para sempre. Vamos embora, agora!

— OK! OK! A mais velha tem sempre razão! — que eles fiquem lá embaixo recenseando os flocos de neve — sussurrou Uriel, fingindo estar com medo dos agentes.

— Tudo bem, chefinha. Você é quem manda, minha Rainha Cigana... — disse Desiderio, dando o braço à amiga. — A gente tem que respeitar quem já passou dos cinqüenta...

— Isso mesmo, afinal de contas, eu não sei se consigo tomar conta de duas crianças ao mesmo tempo... — disse ela, rindo. — Ei! — ela parou, de repente.

— Eu não tenho mais de cinqüenta, quem disse isso?!! — seu olhar era abrasador, agora.

Os Guerrilheiros apenas desconversaram e começaram a descer a montanha, numa velocidade bem maior do que a esperada, sem sequer olhar para trás.

Enfrentar um exército é fácil. Difícil mesmo seria enfrentar o furor da amiga Visionária.



EXÉRCITO DE UM HOMEM SÓ foi escrito por Simoes Lopes

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