domingo, 27 de janeiro de 2008

Rebelião 69: Guerra Fria

A prisão era fria e suja. Mercio Barón estava deitado no chão de pedra, coçando a atadura que lhe imobilizava o ombro. Se não estivesse tão preocupado com a segurança de Miguelita e Francisca, teria conseguido desviar-se da rajada de metralhadora. Antes de desmaiar, ainda viu sua grande amiga Miguelita Barrios Pérez caída no chão, com a cabeça arrebentada, e os olhos vidrados. Os outros militantes comunistas já deviam estar presos ou mortos. O rapaz já não fazia idéia de por quantos dias estava preso, e seu raciocínio estava muito confuso. A noite anterior fora a pior de todas. Álvarez foi torturado em alguma cela ao lado, e Mercio sentiu vontade de arrancar as próprias orelhas para não ter que ouvir a agonia do colega. O ano de 1974 estava sendo horrível para os comunistas no Chile. O governo militar que tomara o poder não media esforços em eliminar toda e qualquer resistência ao regime. Mercio era equatoriano, mas viera em 1971 juntar-se a amigos chilenos em projetos de alfabetização. O golpe, liderado pelo General Pinochet, fora extremamente bem planejado, e toda resistência foi fulminantemente dizimada.

Felizmente, nenhum dos militares viera interrogá-lo ou maltratá-lo ainda, e Mercio tentava coordenar suas idéias a fim de pensar numa saída para tão desesperadora situação. Não tinha parentes no Chile, e todas aquelas pessoas que conhecia, provavelmente também estavam presas. Ou mortas.

Os soldados voltaram ao corredor principal da cadeia. Um corpo era arrastado, aparentemente sem vida. Mercio fingiu estar dormindo, mas pôde ver com os olhos semicerrados a silhueta esguia de Agostín Álvarez sendo arrastada por dois soldados muito fortes. Faltavam-lhe dentes na boca, e as mãos estavam enfaixadas. Seu rosto parecia coberto por um enorme hematoma roxo, e ele balbuciava palavras desconexas.

“Eu não falei...nada...eu não...vou falar...”, eram suas palavras. Quando Mercio escutou, viu que não eram tão desconexas assim. Pensou em reagir, erguer-se e libertar-se, mas sentiu uma grande dor percorrendo-lhe o tronco. Sinal de que os músculos ainda não estavam inteiramente regenerados.

Mas as unhas que foram arrancadas três dias antes já haviam começado a nascer de novo, protegidas de olhares curiosos pelas ataduras. Este era seu segredo. Podia sentir que as costelas partidas já estavam reconstituídas. Até quando conseguiria mantê-lo, ninguém sabe.

As portas da cadeia abriram-se mais uma vez, com um estrondo desagradável. Uma fileira de militares de baixa patente adentraram o corredor, e foram direto na direção da cela de Mercio. Este respirou fundo.

— Mercio Barón! Levante-se! — gritou um dos soldados, com tom arrogante.

A porta foi aberta, e armas foram apontadas na sua direção. Algemas foram colocadas de forma não muito confortável — como era de se esperar — e o jovem militante marxista foi escoltado para fora do corredor. Ao passar pelas outras celas, notou que Agostín estava deitado, aparentemente desmaiado, e que a cela onde estivera Marcelino estava vazia.

Os soldados o levaram até uma sala com porta de vidro, com uma mesinha de cerejeira e duas cadeiras com pernas de ferro. Acomodaram-no numa das cadeiras, de frente para a janela, e ele até notou uma certa falta de truculência nos atos dos militares. O sol estava nascendo por entre as montanhas nevadas ao longe, e mesmo aquela luz mortiça chegou a seus olhos como um clarão ardente, já que estava há dias na escuridão da cela suja.

Os mesmos homens que o trouxeram retiraram-se da salinha, deixando-o sozinho por alguns minutos angustiantes. Era chegado o momento de iniciar sua fuga? Já sentia sua mão plenamente regenerada, mas o estado das costelas e pulmões ainda o preocupava.

Pouco depois, um homem entrou na sala. Era muito alto, com cabelos louros cortados à “escovinha”, e um bigode eriçado. A grande quantidade de insígnias no peito indicava tratar-se de um oficial importante. Ele puxou a cortina com violência, fechando a janela.

— Sou o Major Clodomiro Joaquín Contrero y Villeblanc, eu sei quem você é, Mercio Barón! — disse, com indisfarçável tom arrogante. Mercio permaneceu calado.

— Ou deveria, dizer, como vai, Gripe? — a menção a este apelido provocou arrepios no rapaz, que se levantou. Seus olhos negros clarearam até reluzir num branco incandescente.

— Acalma-te, Acólito! — gritou com a voz rouca e grave o oficial, e seus olhos brilharam como estrelas azuis num céu negro. — Estás diante de um “primo”. Permanece sentado e escuta-me — completou, baixando o tom de voz até quase um sussurro.

— Sou um Precursor, e estou aqui para libertá-lo. Já solucionei os entraves burocráticos, e vou dar-te um salvo-conduto para que saias do país imediatamente.

— Exijo que meus companheiros sejam libertos. — sussurrou Mercio, isto é, Gripe, com tom ameaçador e sem aparentar a mínima gratidão.

— Não. Estou aqui apenas para libertar um parente. A escória humana que busque seus próprios salvadores. Cabe a mim levar-te para fora desta prisão.

— Sem eles, eu não sairei. Não posso trair meus camaradas — o tom de Mercio ainda era o mesmo.

— Não me interessam as crenças estúpidas dos Acólitos. Vim aqui para consertar as bobagens que andaste fazendo. Aceite tudo como está, e tudo acabará bem. Não banque o samaritano, Acólito. Não fica bem para um Nefilim rebaixar-se tanto.

— Sinto muito, Precursor, mas não posso trair meus companheiros e minha causa — respondeu o Acólito, com convicção.

— “Tua causa”, “camarada”, que palavras são essas? Isto não é “tua causa”, imbecil. Ideologias humanas só servem para tanger o rebanho humano de um lado para o outro. Apenas isso. Os filhos dos Kerubim misturam-se demais à carne podre. Temo que vocês desejem tornar-se iguais a eles.

— Nós devemos liderá-los a fim de conduzi-los a um futuro melhor. Estamos aqui para...

— Cala-te. Não agüento mais ouvir chavões de cartilhas políticas. Nós somos superiores a eles, esquece os humanos. Esquece! — um soco na mesa denunciou sua revolta. O Acólito abriu um largo sorriso.

— Por que o riso? — espantou-se Contrero.

— Ora, meu amigo Precursor... Vocês falam mal dos humanos, mas vivem do dinheiro deles. Desprezam os humanos, mas sobrevivem às custas da ideologia capitalista que aprenderam com eles...

— Capitalismo, Marxismo, Trabalhismo...não importa quantos “ismos” os humanos inventem, nós Precursores usaremos de todos os meios possíveis para estar no topo da pirâmide! Nos dê uma sociedade capitalista, e nós seremos os donos do dinheiro; nos coloque num país comunista, e nós estaremos nos altos escalões dos partidos governantes. Não temos “preconceitos”. Há muitos de nós até na União Soviética e na China, meu caro “primo”.

Mercio Barón, o “Gripe” ficou calado.

— O silêncio anuncia minha vitória, então — comentou o Precursor. Venci o debate. Disseram-me que teu apelido é “Gripe” porque seus argumentos são contagiantes. Mas parece que estou imune a estas “doenças” humanas.

— Há ideais que transcendem a tudo. Quando o Armageddon chegar, vocês descobrirão que os Acólitos estão certos. Sua arrogância não valerá nada no Final dos Tempos.

— Ora, meu amigo, mas Armageddon será provocada pelos próprios humanos! Teu pai de asas luminosas não falou-te disso, ainda? Os humanos são criaturas desprezíveis, que rastejam no barro onde foram criados. Agimos apenas como ceramistas. Cabe a nós moldar este barro amorfo para nossos próprios fins. Dar utilidade a tais bestas inúteis. Quando não forem mais necessários, que sejam exterminados. Isto, é claro, se não matarem-se uns aos outros, antes da Grande Batalha.

Clodomiro Contrero levantou-se e entregou os documentos a Gripe, que pegou-os com uma certa relutância.

— Fico feliz que tenha aceito minha ajuda, Mercio — disse o oficial, ajeitando as abotoaduras.

Mercio abriu todos os envelopes e leu tudo. Quando Clodomiro já estava pegando sua pasta para ir embora, o Acólito rasgou os papéis de um movimento só.

— Idiota!!! — o oficial gritou tão alto que foi ouvido do lado de fora. Agarrou o filho de Kerubim pela camisa esfarrapada.

— Sem a minha ajuda tu morrerás aqui, abraçado aos teus amados humanos. É impossível ajudá-los.

— Desafie sempre o impossível — disse Mercio, já se levantando e rumando para a porta.

— Quem disse isso, algum Acólito caquético?

— Não. Che Guevara.

— Ah. Nada como a sabedoria de um morto. Adeus, Mercio, eu fiz o que eu pude.

Mercio Barón não falou mais nada, e foi reconduzido à sua cela.

Meses depois, Clodomiro Contrero y Villeblanc estava em seu gabinete quando recebeu um comunicado. Uma fuga de prisioneiros havia ocorrido na prisão onde estava encarcerado Mercio Barón. Dos treze prisioneiros fugitivos, cinco há haviam sido recapturados, e sete haviam sido mortos durante a tentativa. Faltava um na lista, e Clodomiro — recém-promovido a Tenente-Coronel — tinha absoluta certeza de que este sobrevivente era Mercio Barón, o Gripe dos Acólitos.

O Tenente-Coronel Contrero recostou-se na cadeira acolchoada e deu uma demorada pitada no cachimbo. Soltou um sorriso, enquanto olhava para as estrelas que brilhavam forte no céu noturno cor de chumbo.

“Será que o Acólito saberá que fui o responsável em facilitar a sua fuga? Que abri brechas na prisão inexpugnável que o guardava?”, meditava o astuto filho dos Ofanim. “Sabia que ele não aceitaria minha ajuda, por isso tive que ajudá-lo sem que ele soubesse”, pensava Clodomiro enquanto terminava de ler o relatório sigiloso.

“Que os Kerubim velem por seu filho, e que ele sobreviva às pequenas batalhas dos homens, para participar da grande guerra dos deuses”, recitou sua prece sincera.



GUERRA FRIA foi escrito por Simoes Lopes

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