domingo, 27 de janeiro de 2008

Rebelião 66: Romano, Venerável

Porra, Romano, outro?

O homem encostado no balcão apenas fez sinal para que o barman enchesse o copo. Queria aconselhá-lo a tomar conta da sua vida, mas sua boca estava por demais dormente para articular qualquer palavra.

— Sério, cara — o barman era um senhor dos seus cinqüenta anos, magro e simpático. — As coisas acabam. As pessoas mudam. É a porra dessa vida. Lúcia nã.....

— Ca...la a boca, Bira! — conseguiu rosnar Romano. Sua mão tateou dentro do bolso, como se certificasse que algo ainda estava ali. — Porra! Um cara vai dormir... o mundo é perfeito! Uma esposa maravilhosa...

— Eu sei, Romano.

— ...e, de manhã, onde ela está? Evaporou! Sumiu! E o quê ela deixou?

— Eu sei, você já contou, um bilhete...

— É, a porra de um bilhete! — suas mãos tremeram, e ele deixou cair o copo, que se estilhaçou em mil pedaços no balcão. O barulho chamou a atenção de três homens sentados numa mesa pouco atrás. A forma como olhavam para uma moça que usava o orelhão do bar, em consonância com seus sorrisos e gestos, despertou os instintos de Romano, ao menos subconscientemente. O álcool, no qual o cérebro nadava, não permitia que ele fixasse o pensamento por mais de cinco segundos.

Bira apressou-se a limpar os cacos, enquanto o bêbado exigia outro copo. Parecia não se importar com a gravata e a blusa encharcadas de cachaça.

— Romano — o barman parou de passar o pano no balcão —, te conheço há quinze anos. Você não é essa merda. Você é um — nesse ponto sua voz tornou-se apenas um fio — policial.

— Isso, esse tipo de merda. Falou tudo — ele levantou bambeante. — Bota logo outra pinga aí!

Ele foi de tropeção em tropeção ao banheiro. A garota passou espremida por ele e logo atrás vieram os três homens, que trombaram nele sem pena. Jogado na parede, ele observou as lindas pernas brancas da moça saindo do bar, seguidas pelos sorridentes homens.

Foda-se. Minha bexiga vai estourar.

Entrou no banheiro pisando na beira da calça, que logo se molhou nas poças de urina. A perícia para abrir o zíper lhe faltava, então fez assim mesmo. Tudo que entra tem que sair. A sensação era boa. Quente.

O brilho da privada lhe lembrou outro brilho. As pernas brancas. Ainda estariam brancas? Ou pintadas de vermelho?

Porra!

Atravessou o bar empurrando as mesas. Como se fazia mesmo? Ah, o distintivo. O bar se abria para um beco escuro. Lá estava a jovem caída, rodeada pelos três. Um lhe segurava os braços esticados atrás da cabeça, enquanto outro deitava por cima dela, mantendo-a com as pernas abertas. O terceiro ria e apalpava os seios fartos já despidos.

Cadê a porra do distintivo?

Romano desistiu de apalpar os bolsos e pulou sobre o que realizava flexões em cima da garota. Os dois rolaram e colidiram com os sacos de lixo, espalhando o cheiro de peixe no ar. Em dois segundos o homem já havia se levantado, enquanto o bêbado mal conseguia se ajoelhar. Os três então começaram a chutá-lo, sem nem deixá-lo respirar. O corpo se contorcia ante os golpes, e um distintivo de metal e uma foto de uma mulher sorridente, abraçada com ele, caíram dos bolsos.

Ah, aí está você.

A surra não cede, mas se alguém com percepção um tantinho acima da média observasse a cena, veria o brilho prateado emanando repentinamente dos olhos de Romano, assim como as asas — magistrais, poderosas, surreais — que brotam de suas costas, provocando uma lufada de vento com sua abertura.

Dois latões de lixo ergueram-se no ar e projetaram-se — não há descrição melhor — sobre dois atacantes, lançando-os no chão. O outro interrompeu a torrente de chutes e arregalou os olhos para o homem já ensangüentado. Por um segundo ele percebeu a luz prata dos olhos dele, e todas as células do seu corpo pareceram estar ordenadas para um único fim: expulsar todo o obscuro conteúdo de seu estômago. Imponente, acometido de espasmos, ele ajoelhou-se e emporcalhou ainda mais o beco.

Logo seus dois companheiros o agarraram pelos ombros e saíram em disparada para as luzes da rua principal, sem nem olhar para trás. Da garota, então, nem cheiro; já há muito devia ter fugido.

Romano levantou-se escorado na parede, enquanto uma energia percorreu sua pele, cicatrizando os ferimentos e dissolvendo em seguida a cicatriz. Em menos de um minuto o único resquício da dura surra é o sangue em seu terno amarrotado. Ele guardou o distintivo e a foto, enlameada, no bolso.

Preciso de um drink, pensou, ao retornar ao bar.

No beco vazio, as sombras se comportaram de modo anormal: moveram-se, juntaram-se, dando forma a uma figura grotesca, uma figura grotesca de chifres.

Você não sabe o quanto.

ROMANO, VENERÁVEL foi escrito por Andre Esteves

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