domingo, 27 de janeiro de 2008

Rebelião 70: Um Milhão de Mortes

15 de setembro de 1941.

Esta data ficará gravada em minha memória. Eu me chamava Diego Montesino, e morava em Paris com minha querida mãe Madalena Montesino. Comunista espanhola, fora obrigada a deixar seu país natal para não ser morta pelos soldados franquistas. Anos depois, viu seu país adotivo ser dominado pelos nazistas, e tornou-se membro ativo da Resistência Francesa. Eu, um tanto alheio ao cenário turbulento, era apenas uma espécie de garoto-prodígio, pianista virtuoso desde os oito anos de idade. Ainda me lembro do maldito dia em que os nazistas invadiram nosso apartamento, num ataque fulminante. O comandante do grupo — ele não parava de repetir seu nome — chamava-se Kurt Haller: bigodinho ridículo, “à moda do Führer”, cabelos louros, olhos negros. Assisti minha mãe ser executada com um disparo pelas costas. Sabendo que eu era pianista atirou em minhas duas mãos, antes de me “presentear” com um tiro no peito.

25 de dezembro de 1941.

Três meses após a morte de minha mãe, estava eu vivendo na cidadela subterrânea de Heliopolis. Eu já sabia que era um Acólito e minha existência passada já parecia um sonho distante. A Ruivona me encontrara agonizante no meu apartamento, ajudando-me a regenerar os ferimentos e voltar à vida. Não deixei que minhas feridas nas mãos cicatrizassem inteiramente, e nunca mais toquei piano desde então. Ainda assim ganhei o apelido de Pianista, e quem me chamou assim pela primeira vez foi a minha tutora Fen Lu-Na, chamada de Carmim no meio dos Acólitos.

2 de janeiro de 1971

Foram trinta anos aperfeiçoando meus poderes. Jamais perdi a esperança de descobrir o paradeiro do assassino de minha mãe. E foi nesta data que uma série de eventos levaram-me a descobrir que Kurt Haller não só estava vivo, como se chamava agora Roman Berliner, vivendo na Argentina incógnito. Parti imediatamente em seu encalço.

3 de março de 1971

Encontrei-o morando numa bela casa, com um lindo jardim de rosas vermelhas. Não tive dificuldade em entrar. Encontrei-o dormindo em seu quarto. Ele estava muito mudado: cabelos grisalhos e mais ralos, nenhum bigode, óculos, possivelmente submetido a mais de uma cirurgia plástica.

Enganara a todos.

Menos a mim.

Eu jamais esqueceria aquele rosto.

“Boa noite, Herr Haller” – disse eu, acordando-o. Ele não pareceu demonstrar medo, tão seguro que estava, me disse que não era aquela pessoa e ameaçou chamar a polícia. Mostrei as cicatrizes em minhas palmas, “Lembra-se do garoto pianista? Estou aqui para a vingança!”

A arrogância do maldito desapareceu por completo, ele parecia agora uma criança assustada. “Eu andei meio mundo à sua busca! Estou aqui para saciar meus desejos de vingança!”, gritei, agarrando-o pela gola do pijama. Usei de todos meus poderes, assumindo uma forma demoníaca, e o apertei seu rosto. “Implore agora, nazista! Implore como a minha mãe fez!” Senti que ele tremia, e as calças já estavam borradas. Ele chorou, chorou e chorou. Eu o olhei bem nos olhos:

“Preste atenção. Pode ter certeza que eu voltarei. Pode ser amanhã, ou no próximo mês, ou no próximo ano. Eu o segui até aqui e posso segui-lo aonde quer que você vá. Fique aqui no seu refúgio, imaginando como será sua morte, nas inúmeras e terríveis maneiras como eu poderei acabar com você. Enquanto isso, pense em minha mãe e em todas as suas vítimas.”

Larguei-o com força na cama, despedindo-me:

—Até logo.

8 de agosto de 1974.

Já se passaram três anos. Kurt saía pouco de casa, eu observava às vezes sem que ele percebesse. Ele tinha pesadelos terríveis, e vivia com medo de tudo e todos. Calvo e emagrecido, andava escorado numa bengala. Eu continuo na espreita.

29 de junho de 1975.

O jornal local sequer noticiou a morte do esquecido doutor Roman Berliner. Debilitado pelo horror permanente em que vivia, acabara sucumbindo. No cemitério, apenas uma pessoa assistiu ao corpo baixar à sepultura.

Eu.

Ao decidir não matá-lo, eu o condenei a um milhão de mortes.

30 de junho de 1975.

Após tantas décadas, voltei a tocar piano. É maravilhoso perceber que tanto tempo, eu ainda tenho o dom. Estou tocando a música preferida de mãe. Durante boa parte da minha vida, eu desejei ter morrido junto com ela, e de certa forma, sentia uma espécie de culpa por ter sobrevivido, sem poder salvá-la. Mas agora eu percebo que de certa forma, Diego Montesino realmente morreu junto com sua mãe naquele fatídico ano de 1941.

Agora eu sou apenas o Pianista, um dos mais antigos e renomados membros da linhagem dos Acólitos.



UM MILHÃO DE MORTES foi escrito por Simoes Lopes

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