sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Rebelião 72: Paraíso Perdido

Foi mais ou menos em 1909 que os quatro homens chegaram àquela região desértica no interior do Quênia. Os ingleses prosseguiam com sua dominação feroz, eufemisticamente chamada de “colonização”. Fome, peste, opressão e morte estavam por toda parte. Os quatro vestiam túnicas compridas com longos capuzes. Alguns os chamavam de monges; outros os viam como imãs muçulmanos; houve até aqueles que os consideraram como rabinos ou simples homens sábios. Pela sua cor, todos sabiam que eram africanos, mas eles jamais disseram de onde vinham.

O mais alto eles era muito magro e seu nariz bem comprido e adunco. Seus olhos eram grandes e de uma hipnótica coloração amarelo-ouro. Os africanos chamavam-no de Tai. Assad, que usava sempre um manto escuros, tinha barba e cabelos negros e volumosos, e sua voz era rouca e possante. Os ingleses chamavam de Matthew o mais baixo do grupo, que apesar da pequena estatura era grandioso em bondade e alegria, e cujos cabelos vermelhos chamavam a atenção. Completava o quarteto o enorme Lucas, um gigante cujo apetite era pantagruélico. Sua cabeça era raspada, tinha uma barba de alvura extrema, e seus olhos eram tão claros que também pareciam brancos.

Onde antes havia sofrimento, surgiu a fertilidade. Os quatro homens trabalhavam a terra com habilidade ímpar, e ao redor de si foram juntando os pobres famintos e desesperados. Em pouco anos, nas terras outrora estéreis e áridas, floresceu um verdadeiro jardim, batizado pelo habitantes de Dogo Ferdausi, “Pequeno Paraíso”. Os rebanhos cresciam, os animais eram fortes e pujantes. Abelhas reunidas em incríveis colméias davam um mel delicioso, e o leite das vacas era saboroso e revigorante. Ali todos trabalham juntos para a prosperidade comum, e não havia diferenças. Com o tempo, até europeus e indianos juntaram-se àquele pequeno pedaço do Éden.

Os quatro anciãos eram discretos e falavam pouco, mas estavam sempre dispostos a ajudar e resolver problemas, e vida seguia feliz.

Até que um dia, num riacho até então pouco notado, foram descobertos diamantes, e tudo começou a mudar. Atraídos pela riqueza, gente de todas as partes chegava, e com eles, a ganância, a vaidade e a violência. A beleza mineral atraiu os olhos da Coroa Britânica, e tropas foram destacadas para ocupar Dogo Ferdausi.

Lucas — a quem os imigrantes indianos chamavam de Vrishabha —, Assad, Matthew e Tai disseram aos soldados britânicos que aquele lugar era pacífico, e que eles não precisavam das gemas preciosas. Queriam apenas prosseguir em sua vida pacata, e que não desejavam ser importunados por garimpeiros e mercenários.

O Exército da Coroa não reconheceu os direitos daqueles “africanos insolentes”, e iniciou-se uma guerra, tanto com armas como com mentiras. Os religiosos viam os quatro guias de Dogo Ferdausi como hereges; para os governantes, eles eram rebeldes insurretos; para a elite britânica, eram como uma peste que podia alastrar-se.

Foi ordenada a evacuação do povoado, e a ocupação das terras diamantíferas pelo Exército Real. O povo pacífico era forte e saudável, e sua honra tamanha que não aceitaram as ordens do colonizador. Incapazes de dobrar seus oponentes, os ingleses decidiram quebrá-los.

Quando os soldados invadiram a aldeia com suas armas e bombas, até mesmo os animais nativos pareciam estar do lado dos indefesos habitantes. Manadas de búfalos e gnus investiam contra os homens, e leões enormes trucidavam os soldados atônitos. Aves de rapina descia dos céus como se fosse máquinas de guerra, visando olhos e outros pontos fracos. A própria Natureza parecia rebelar-se contra o jugo da tirania.

No alto de uma pequena colina, em sua humilde cabana, os quatro sábios a tudo assistiam, como se fossem comandantes daquela estranha rebelião. Quando os ingleses partiram em debandada, eles soltaram um grito de alegria. E eles desceram para ajudar aos seus “irmãos” feridos. Por toda parte, pessoas agonizavam, crianças chamavam pelas mães, e mães choravam pelos filhos mortos. Corpos mutilados estavam espalhados pelas hortas pisoteadas e destruídas. O sangue das reses fuziladas fluía como se fosse um rio escarlate.

A noite foi de dor e pranto, mas Tai, Lucas Vrishabha, Assad e Matthew estavam ali para acudir a todos os necessitados e confortar os combalidos.

O sol nasceu forte, e com ele um barulho estranho no horizonte. Zepelins aproximavam-se pelo lado leste da aldeia. Antes que qualquer reação pudesse acontecer, as máquinas voadoras começaram a despejar suas bombas.

As névoas amareladas de dicloroetilsulfeto — o hediondo gás mostarda — começaram a engolfar Dogo Ferdausi com eficiência genocida. As pessoas podiam sentir na pele grandes bolhas amareladas, olhos lacrimejavam, e pulmões ardiam. Até mesmo os animais tombavam mortos.

Em menos de um hora, todos estavam mortos. Dogo Ferdausi chegava a seu fim, no ano de 1915. Com equipamentos protetores, os soldados retornam mais uma vez, seus coturnos pisando em cadáveres e sua sede de vitória saciada. Eles confluem para a cabana no alto do pequeno morro, desejam encontrar os corpos dos quatro líderes daquela rebelião frustrada.

Os primeiros a chegar não acreditam no que vêem: o quarteto de homens encapuzados está vivo, à sua espera.

— Nós criamos um Paraíso aqui — o som parecia sair dos quatro ao mesmo tempo — e tudo nos foi tirado. Onde antes fluía o leite e o melo, apenas corre o sangue e a água envenenada.

Os soldados apontaram as armas para os seus inimigos. O comandante deu alguns passos à frente, também com a arma em riste.

Os quatro homens deram um passo para lado, deixando à mostra no chão uma colméia, aparentemente intacta.

— Foi tudo o que nos restou, bonecos de barro. O mel que alimentou aquele povo feliz. O mel doce como o maná dos Céus — enquanto isso, novos soldados iam chegando e cercando os mentores da insurreição derrotada.

— A doçura acabou, agora só restam as abelhas. E seus ferrões.

Um enxame começou a sair da colméia, formando uma espécie de nuvem cinzenta ao redor dos militares britânicos.

— FERRÕES AGUDOS COMO AS CHAMAS DO INFERNO.

As abelhas atacaram com um zumbido infernal. Os soldados gritavam, corriam e se debatiam.

O manto que cobria Matthew desmanchou-se como se feito de poeira, e suas formas cresceram. — A DOR SERÁ INSUPORTÁVEL — disse ele, com uma voz incrivelmente mais ressoante agora. Duas enormes asas negras mosqueadas cresceram em suas costas, e a escuridão das madeixas contrastando com os olhos brilhantes, que mantinham-se fixos no soldados que não sabiam para onde correr.

Tai fez uma espécie de careta horrenda, enquanto seu nariz adunco transformava-se dando origem a um bico de ave de rapina, e grande asas douradas brotavam de seus ombros. Garras afiadas e penas despontavam de seu novo corpo. — MAS VOCÊS NÃO MORRERÃO. NÃO AGORA — mais um espasmo muscular, e sua cabeça era agora com a de uma águia. Sua voz tornou-se um grito estridente que fez estourar os tímpanos de muitos dos homens.

Lucas Vrishabha bateu no chão com os pés, que agora inchavam, transformando-se em patas de boi, os dedos sofrendo uma metamorfose indescritível e convertendo-se em cascos fendidos. A cabeçorra deformava-se, ganhando dois enormes chifres em forma de crescente. — VOCÊS DEVEM VIVER, POIS SÓ OS RESPONSÁVEIS POR ESTE HEDIONDO MASSACRE DE INOCENTES É QUE SE LEMBRARÃO DISTO. POR TODO O RESTO DA SUA DESPREZÍVEL VIDA, VOCÊS SE RECORDARÃO DO CHORO E DA AGONIA — sua cabeça era agora era como a de um imponente touro ou búfalo, e seu corpo titânico estava coberto de pêlos curtos, brancos como a Lua Cheia. Seu brado de dor foi um mugido que fez a terra tremer.

Assad caminhou lentamente em meio as hordas de abelhas ferozes, sem nada sentir. À medida que caminhava, as pegadas gravadas na terra mole mudavam de formato, passando de pés humanos para enormes patas leoninas. Se cabelo tornava-se mais denso ainda, formando uma juba escarlate ao redor de sua cabeça. — NÓS TENTAMOS MOSTRAR-LHES O CAMINHO DO PARAÍSO, MAS VIMOS QUE A ESTIRPE DEGENERADA DE ADAM NÃO É DIGNA DE HERDAR ESTE MUNDO BELO — grandes asas cor de fogo cresciam em seu dorso arqueado, e grandes garras retráteis projetavam-se de seus dedos curtos. Caninos salientes estavam à mostra, e seu rugido ecoou pelos vales e montanhas como um trovão retumbante.

Enquanto os militares corriam enlouquecidos pelo terreno devastado, tropeçando em cadáveres, caindo em poças fétidas, com os insetos infernais atacando-lhes sem clemência, os quatro sábios revelavam-se agora em sua verdadeira forma: quatro anjos Beni Elohim, pairando sobre a paisagem nefasta — NÃO HAVERÁ PERDÃO PARA TAMANHA IGNOMÍNIA, CORJA ADAMITA. QUANDO CHEGAREM AO INFERNO, SAMAEL ESTARÁ À SUA ESPERA. As asas de penas reluzentes agora encarquilhavam-se e desfaziam-se, deixando como resultados enormes asas de couro escuro como as de um morcego colossal. A carne celestial parecia queimar e moldar-se sob o efeitos de chamas tartáreas. Os semblantes agora pareciam com os de hórridos símios disformes, batendo suas asas demoníacas contra o vento. — CRIAREMOS UMA NOVA RAÇA PRIMAL PARA REPOVOAR ADAMAH E SOBREPUJAR A RAÇA HUMANA. E QUANDO A DEGENERADA HUMANIDADE CHEGAR AO FIM... NOSSA PROLE REINARÁ, SUPREMA EM UM PARAÍSO RENASCIDO.

* * *

Manchester, Reino Unido, 12 de dezembro de 1956. Morre Ronald Creeks, aos 78 anos, participou em 1915 da destruição do povoado queniano de Dogo Ferdausi.

Dallas, Estados Unidos, 2 de maio de 1966. Morre Herbert Brighte, aos 81 anos, participou em 1915 da destruição do povoado queniano de Dogo Ferdausi.

Ottawa, Canadá, 11 de março de 1971. Morre James Alexius Bornsey, aos 71 anos, participou em 1915 da destruição do povoado queniano de Dogo Ferdausi.

Londres, Reino Unido, 10 de julho de 1972. Morre Michael Aldous Forster, aos 87 anos, participou em 1915 da destruição do povoado queniano de Dogo Ferdausi.

Pretória, África do Sul, 7 de junho de 1978. Morre William Anthony Well, aos 86 anos, participou em 1915 da destruição do povoado queniano de Dogo Ferdausi.

Pretória, África do Sul, 18 de fevereiro de 1982. Morre Maximilian Peter Well, aos 94 anos, participou em 1915 da destruição do povoado queniano de Dogo Ferdausi.

Em todas estas mortes, algo em comum: antes de dar o último suspiro, eles foram vítimas de um súbito frenesi. Em delírio, diziam estar ouvindo um barulho ensurdecedor — que só eles ouviam, no entanto — como de milhões de abelhas zumbindo. Todos confessaram ter cometido o mais hediondo dos crimes, e imploraram por perdão. “Eu participei do Massacre de Dogo Ferdausi”, assim eles gritaram, mas ninguém entendeu o que diziam. Os livros de História jamais mencionaram tal fato, ficando a breve existência daquele pequeno paraíso oculta de todos.

Mas a lembrança do Pequeno Paraíso ainda assim persistiu, confinada às atormentadas mentes de seus algozes.

PARAÍSO PERDIDO foi escrito por Simões Lopes

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