sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Rebelião 89: A Quarta Tentação


Um homem está sentado no chão pedrento. Seus olhos vidrados fitam o céu estrelado, como se buscassem enxergar através dele. A pele tostada pelo sol escaldante do deserto agora arrepía-se com o vento frio que sopra de noite. A fome e a sede o afligem, mas ele segue imóvel como uma estátua. As barbas longas e crespas, negras como carvão, estão salpicadas pela geada. Há quarenta dias ele peleja contras as mais duras provações, buscando no martírio uma forma de transcender as limitações daquele corpo frágil de carne e sangue.

Ele veio da distante Galiléia em busca de Deus mas não o encontrou. Em vão, buscou-o nas fontes, nas árvores, nos espinheiros e nos picos das montanhas. Gritou seu nome pelos vales, onde o som ecoou apenas como uma triste pergunta sem resposta. Ele sabe que uma grande missão espera por ele, mas sabe que os obstáculos serão os maiores possíveis.

Entorpecido por uma quarentena de flagelos e mortificações, ele busca no sofrimento a chave para abrir as portas do Reino dos Céus. O mundo inteiro parece mergulhado em guerras, pragas, morte e cobiça. O forte pisando o fraco, uns poucos guardando para si o que deveria ser de todos, e o Amor, a única lei de Deus, jaz como uma palavra vazia aprisionada em templos de pedra e rolos de pergaminho.

Aquele homem de cabelos longos sonha em salvar o mundo. Aquele nazareno sonha acordado, ignorando a dor em suas juntas cansadas, imerso numa atmosfera delirante. Ele escuta passos na areia à sua esquerda: os olhos injetados de sangue se movem lentamente na mesma direção.

Uma criança envolvida em trapos fita-o com olhos banhados em lágrimas. Sua pele, assim como os cabelos curtos, é negra da cor da noite. Negros também são os farrapos que cobrem-lhe o corpinho esquelético. Ela abre um sorrisinho tímido, e seus dentes tortos também estão inteiramente pretos.

— A fome está me matando, senhor. Transforma estas pedras em pão para que possamos comer.

O homem ergue-se, com sua sombra ao luar projetando-se sobre a criança famélica. Ele toma uma grande pedra na mão, e leva-a para junto de si.

Ele aperta a rocha com as mãos, fazendo-a brilhar como uma estrela. Quando brilho se apaga, a pedra fez-se pão.

O menino sorri, e arreganha os dentes numa bocarra semianimalesca.

— Vamos saciar nossa fome, agora, Filho de Deus. Este é o seu poder sobre a matéria. Os elementos te obedecem, o mundo ficará a seus pés.

O homem segura as mãos do menino, que cai de joelhos, chorando de dor.

Nem só de pão vive o homem, Lúcifer. Isto não é para mim, mas para teu escravo — o tom da voz é sereno, e ele faz com o que o menino esquálido coma um pouco daquele pão.

O homem torna a sentar-se na areia, e assiste ao garoto, agora livre do domínio demoníaco, desaparecer nas sombras.

O galileu respira fundo, sentindo no peito as palpitações de um coração que bate acelerado. O gosto de sangue na boca, o cheiro acre do suor seco de suas vestes, parecem cada vez mais acentuados. Fecha os olhos e ora mais uma vez. Clama pela proteção de seu Pai.

Quando abre os olhos, à sua frente, vê uma mulher trajando uma armadura de metal escarlate. O cabelo, vermelho como o fogo, é rapado curtíssimo, e tem o corpo elegante coberto por uma armadura de placas escarlates, cravejada de rubis cintilantes. Carrega duas enormes espadas, guardadas em suas respectivas bainhas.

Ela agarra-o pelo pescoço, arrastando-o com violência até a beira de um penhasco. O galileu não esboça a mínima reação.

— O Céu não vai escutar-te! O Deus Onisciente está dormindo e não vai te ajudar! Queres a ajuda das hostes celestes? Pois então clame por elas! Atira-te deste penhasco, e que eles te salvem com suas asas de luz!

A mulher brandiu as espadas, gritando com a voz possante.

— Tu desejas tanto o Reino dos Céus! Pois que venha a ti, agora! Lança-te, ou eu mesma irei derrubar-te!

Ele mergulhou no abismo, e sentiu o tempo congelar-se, enquanto o vento uivava em seus ouvidos. Em sua longa descida, e sentiu-se acompanhado por uma revoada de pombas selvagens. Ele podia ouvia as asas delicadas batendo, os arrulhos sinfonicamente preenchendo o silêncio das escarpas rochosas. Ele pensou nos anjos, e uma esfera de luz envolveu-o.

A mulher gargalhou triunfante: — Exerce teu poder sobre os anjos, e eles te obedecerão. O Reino dos Céus revelar-se-á, e tu será teu Rei Eterno.

A esfera de luz se apagou, e um horrível estalo foi ouvido quando o corpo bateu no chão.

O grito de fúria da guerreira mais pareceu o rugir de uma leoa, e ela desceu as escarpas íngremes com a agilidade de uma cabra dos montes. Alcançou o homem agonizante, com o sangue espumando em sua boca, as costelas partidas, e uma das pernas esmagadas.

Com os dedos ensanguentados, o nazareno marcou uma cruz na testa na guerreira infernal.

— Não tentará o Senhor Teu Deus, Samael. Pelo sangue derramado, eu liberto tua escrava.

A mulher lançou fora as placas de metal que cobriam seu corpo e ajoelhou-se perante corpo caído. Com suas espadas formou uma cruz, e fez com que dela emanasse uma jato de luz envolvendo e restaurando a forma original do corpo alquebrado. Os ossos partidos regeneraram-se, e os órgãos esmagados pulsavam agora com toda vitalidade. De seus olhos vermelhos rolaram lágrimas de sangue, e ela galgou as encostas escarpadas e também desapareceu.

O homem de barba crespa sabia que a batalha ainda estava longe de terminar, e orou pela misericórdia de Deus. Com suas mãos riscou o chão poeirento até que os dedos sangrassem. Chorou como um bebê faminto. A noite estava agora cada vez mais escura.

Mas então a luz apareceu, na forma de um ancião de cabelos branquíssimos como a neve, os olhos resplandecendo com o brilho do relâmpago. Uma túnica de linho cingia-lhe o corpo rotundo, e seu sorriso era terno e confortante.

— Meu filho único. Eu vim para tirar-te desta cova imunda e fétida. Libertar-te desta prisão.

Ele sentiu-se tomado em espírito, e viu-se voando por sobre o deserto, chegando a alturas impossíveis de calcular. A seu lado, o velho indicava-lhe, em tom paternal:

Tudo isso te darei se, prostrando-te, me adorares.

Ele viu palácios majestosos, e montanhas de riquezas, templos suntuosos repletos de adoradores em êxtase, e exércitos dos mais bravos guerreiros entoando seu nome, dóceis e a seu dispor.

Tudo isso te darei se, prostrando-te, me adorares”, a frase pareceu ser repetida muitas vezes.

Ele beijou a face do ancião, e fitou-o nos olhos.

— AFASTA-TE, SATHANAEL.

Um raio cortou ao céu, atingindo-os em cheio.

Um redemoinho de poeira envolveu-os, e o galileu se viu mais uma vez sobre a terra árida do deserto da Judéia. Ao teu lado, o corpo do velho estava reduzido a uma massa carbonizada.

— Adorarás o Senhor teu Deus e só a ele servirás. Não podeis servir à Riqueza e a Deus ao mesmo tempo.

O cadáver enegrecido reviveu, com as órbitas vazias emitindo faíscas de luz negra, que serpenteavam pelo ar como criaturas vivas. A pele recuperou sua brancura original, de um tom que lembrava o mármore dos palácios, e o Arqui-Demônio Sathanael bateu suas enormes asas infernais, zumbindo como um pavoroso inseto. Sua pele enrugada e encarquilhada acentuava suas feições decrépitas, e os dentes afiados, em carreiras múltiplas, rangiam com um barulho desagradável.

— Deus criou o Homem para ser um simplório jardineiro, mas eu sempre tive planos maiores! Veja o que esta inglória raça feita de barro tem feito ao redor do mundo: eles matam, eles roubam, eles mentem! Somente eu compreendo sua real natureza, e é por isso cada vez mais eles me seguem. As almas dos homens pertencem a mim, governa-os!

O Arc’Anjo tornou-se ainda maior, e à sua volta foram surgindo legiões de seguidores, homens e mulheres, soldados e sacerdotes, mendigos e príncipes. Eles gritavam o nome do nazareno.

— Sacia tua sede de poder, não em meu nome, mas em teu próprio! Somente o Criador exigia adoração exclusiva. Eu não tenho estes caprichos.

— Afasta-te, Sathanael.

— O teu Deus te abandonará.

— Afasta-te, Sathanael.

— Aqueles que te seguirem negarão conhecer-te ou preferirão vender sua fidelidade por um punhado de moedas.

— Afasta-te, Sathanael.

— Aqueles curados por ti ansiarão por vê-lo pregado em uma cruz. Até mesmo os Anjos celebrarão a tua morte, Filho de Deus.

— Afasta-te, Sathanael.

O demônio desapareceu, deixando em seu rastro uma pilha de ossos humanos espalhados ao redor do ermitão, como se formassem uma mandala gigantesca.

Ele virou-se para a direita, e ouviu um canto melodioso vindo de uma gruta, escondida nas sombras da noite.

Ele levanta-se cambaleante, sentindo os membros estremecerem. O suor escorre gelado, as pupilas dilatam-se.

— Amai-vos uns aos outros — dizia uma voz feminina, insinuante. — Meu amor é todo teu, Filho do Homem!

Uma mulher magnífica aproximou-se, os quadris largos balançando graciosamente, a pele bronzeada pelo ardor do sol mediterrâneo, os cabelos cor de ouro esvoaçando com a brisa noturna.

O homem tentou impedi-la de se aproximar, mas sentia-se indefeso diante de tamanha sensualidade.

— SHEMHAZAI, POLUIDOR DE ANJOS E HOMEM, EU POSSO SENTIR SUA PRESENÇA DIABÓLICA. Meus outros inimigos não prevaleceram, e tu não prevalecerás! — gritou ele, desviando os olhos da nudez sedutora daquela serva do Inferno.

— Eu sou sua inimiga, meu senhor? — sua voz era límpida e musical, mas era possível perceber um leve ruído difuso, como se vários seres invisíveis falassem ao mesmo tempo em que ela. — Ama a teu inimigo, como a ti mesmo, assim tu ensinarás.

Ele suava e tremia.

— Eu te ofereço o poder sobre o Inferno e sobre todos os demônios! — gritou ela, enquanto sombras ameaçadoras rodopiavam ao seu redor. Cada frase dela era reforçada por uma sutil cacofonia de sete vozes entrelaçadas. Em cada palavra pronunciada, ele captava diferentes timbres combinados. Às vezes, uma sílaba soava como um grito, outras vezes, o som era sibilante. Enquanto a mulher falava, pela atmosfera ecoavam impressões de urros, uivos, zumbidos, gargalhadas.

Ela sorriu mais uma vez, saboreando a vitória possível. As sete sombras infernais que emanam da fêmea aprisionam o macho numa câmara de trevas intransponíveis. Protegida e revigorada pela Escuridão a quem serve, a mulher prossegue em seu estranho ritual de acasalamento, onde os opostos se atraem. Macho e fêmea. Êxtase e Agonia. Céu e Inferno. Amor e Ódio. Luz e Trevas.

Três tentações. Três Arquidemônios derrotados.

A quarta tentação seria a mais difícil de todas.


A QUARTA TENTAÇÃO foi escrito por Simões Lopes

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