terça-feira, 22 de setembro de 2009

Rebelião 94: Amigos de Longa Data


A Catedral de Nossa Senhora Madre de Deus estava vazia, como de costume naquela hora do dia. Umas poucas pessoas rezavam em silêncio, e um trio de senhoras acendia velas do lado de fora. Um homem impecavelmente barbeado e de têmporas raspadas, com uma enorme cicatriz na metade esquerda do rosto escuro, olhava fixamente para a imagem do Cristo crucificado no altar, enquanto esperava por alguém. Já fazia mais de uma hora que tinha chegado, e seu amigo de longa data ainda não aparecera.

— Chico!!! — gritou uma voz possante, vinda de fora da Igreja.

—Chico!!!! — a voz de trovão era insistente.

Antes que os paroquianos começassem a reclamar do súbito importúnio, "Chico" decidiu ir ao encontro daquela voz que lhe soava cada vez mais familiar.

Um homem baixo mas incrivelmente robusto, com a barba espessa de um castanho muito escuro e olhos azul-celeste, acenava com os braços musculosos e um tom de alegria quase frenética no semblante.

— Chico, há quanto tempo! Você não sabe como foi difícil localizá-lo, guerreiro!

— Ildebrando? — disse Francisco Xavier, em tom de reconhecimento.

— Claro que sim... Quem mais poderia ser?

Enquanto recebia um abraço forte o bastante para fraturar costelas, o capitão Francisco Xavier da Luz se lembrou de quando conhecera Ildebrando, há mais de um século e meio atrás, nos dias sangrentos dos Farrapos. Ildebrando Carraro acabara de chegar da Itália, acompanhando Giuseppe Garibaldi, em busca de emoções fortes e combates sem fim.

— Por onde andas? — perguntou Francisco, trocando a alegria por um ar mais compenetrado.

— Antes de tudo, há muito que não sou o "Ildebrando". Hoje em dia ando sendo chamado de Márcio Martins, ou Alex Monte, dependendo da situação.

— Situação? — estranhou Francisco.

— Isto não vem ao caso, velho amigo... Para você, eu continuo sendo o mesmo Ildebrando de sempre.

A conversa com o amigo começava a provocar um bombardeio de memórias na mente de Francisco. Ele se viu novamente em 1840, quando era Chico Luz, o melhor dos Lanceiros Negros do coronel Teixeira Nunes, e lutava ferozmente ao lado do rebelde florentino (acusado às vezes de ser um anarquista enrustido) Ildebrando Carraro. As tropas imperiais perderam muitas vidas pelas armas daqueles dois homens. Chico e Carraro eram Triunfantes, e embora Chico já fosse bem velho para os padrões dos mortais, com 172 anos, seu colega italiano era bem mais antigo, e nem mesmo o ex-Lanceiro sabia ao certo quanto anos ele tinha na verdade. Deveria já passar dos seiscentos anos, o que era bastante até mesmo para um Triunfante. Um sinal de que sua missão em Adamah estava longe de terminar, ou que seu prazer em guerrear conseguia se traduzir em uma vitalidade inesgotável.

— Faz muito tempo, heim? — disse Ildebrando, evitando arriscar um palpite.

— Desde a Revolução Constitucionalista de 32... — completou Chico.

— É. Alistei-me na década seguinte e fui lutar na Europa, você também?

— Fui, atuei como mercenário, lutei em ambos os lados.

— Com teu passado anarquista e carbonário, não imaginaria tu ao lado dos fascistas...

— O Vaticano estava com eles!

— Não oficialmente!

— Estar do lado “errado” pode render uma boa gama de ótimos inimigos. Há muito tempo que não me prendo a ideais ou bandeiras. Fui à guerra pelo prazer de lutar, sentir o gosto de escapar da sombra da Morte a cada instante.

— Enquanto isso, acabei engajando-me em uma nova identidade como policial, e graças a isso, ganhei esta cicatriz.

— Só voltei ao Brasil para me juntar aos grupos armados no Araguaia. Ajudei a desencarnar muitos soldados e oficiais, mas hoje não caço mais humanos — explicou Ildebrando, num tom quase professoral.

— Eu estou no BOPE, e continuo "caçando humanos", e diversas vezes o “caçador” quase tornou-se a "caça" — pigarreou Francisco.

— Na Europa conheci alguns Triunfantes que viraram justiceiros, caçando criminosos sem distintivo ou farda. Porque se ligar a uma instituição? Não se sente tolhido pelas “leis” que jura defender?

— Claro que sinto. E são justamente estas limitações que tornam minhas guerras mais emocionantes e arriscadas.

— Entendo...

— Por que quiseste marcar este encontro?

— Quero fazer uma proposta... digamos.... de "emprego"...

— Ahn?

— Como já disse, não caço mais humanos. São presas fáceis demais. Estou caçando Nefilim, não para destruí-los, mas para capturá-los. É tão difícil que se torna uma proeza de grande renome.

— Sucessos?

— Alguns.

— Derrotas?

Ildebrando não falou nada. Limitou-se a mostrar a mão esquerda espalmada. Dois dedos tinham suas pontas mutiladas. Sorriu, escancarando três dentes de ouro. Desabotoou um pouco a camisa, mostrando uma enorme marca de queimadura no peito, meio encoberta pelo tecido.

Chico Luz coçou a cabeça, e sentiu o celular o tocando. Não atendeu.
— Os malditos são quase invencíveis, Chico. Tu não imaginas do que são capazes... Aceita o desafio?

— Sempre em busca do triunfo mais improvável, velho amigo. Assim vivemos e assim morreremos...

O aperto de mão foi forte e caloroso.

— Pode contar com o velho Chico Luz!

Ildebrando sorriu.

— O que tu fazes com os Nefilim após capturados?

O sorriso sumiu da face barbuda.

— Tudo a seu tempo, meu amigo. Tudo a seu tempo. Primeiro vamos comemorar nossa longa data. É uma pena que tenhamos mais o vinho forte do Bar do Figueiró.

— O Figueiró morreu em 1892. Se tivermos sorte, os descendentes talvez tenham mantido o bar.

— Sorte é o que jamais falta a um Triunfante, amigo! — soltou uma gargalhada, que assustou as colegiais que atravessavam a rua.

— Com certeza, Ildebrando, com certeza. Se lembra em qual rua ficava?

O sorriso decorado com dentes de ouro indicava que sim.

Ele se lembrava.


AMIGOS DE LONGA DATA foi escrito por Simões Lopes

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