terça-feira, 3 de novembro de 2009

REBELIÃO 96: Vitória ou Morte

ECOS DE PRAGA I

Sua presença no restaurante provocava um indisfarçável desconforto nos clientes. A enorme figura, de quase dois metros de altura, com os ombros larguíssimos cobertos por um casaco negro, e um chapéu da mesma cor realçava ainda mais seu porte imenso, passou silenciosamente por entre mesas e cadeiras, alheio aos olhares fugazes e comentários abafados.

Um homem jovem, de cabelos castanhos, comia avidamente um prato de carne de porco com molho de aspargos e purê de batatas. Os talheres cortavam grandes nacos de pernil que eram enfiados goela abaixo com uma pressa inexplicável. Ele percebeu que o rabino vinha em sua direção, e respondeu com uma saudação curta:

— Salve, rabino.

O homem de barbas de porte titânico nada falou, limitando-se a puxar a cadeira e sentar-se. Sua barba ainda era bem negra, apesar da idade avançada.

— Este porco está delicioso, mas lamento que sua religião o impeça de juntar-se a mim...

O rabino continuou sem esboçar nenhuma reação.

— Não se ofenda. Perdoe-me, mas estou faminto — deu mais uma garfada, enfiando mais uma fatia gordurosa pela boca. Tomou um gole de vinho tinto.

— Considere-se meu convidado, peça o que quiser — tentou um gesto amistoso, esperando agradar seu companheiro de mesa.

— Obrigado, Nepomuceno, mas isto não é uma visita festiva. A voz era tão rouca que mais parecia um trovão abafado.

— Mais um cemitério judaico foi violado, e a duas sinagogas em Brno foram incendiadas — disse ele, num esforço tremendo para que o tom fosse de um sussurro.

— Os neonazistas andam agitados ultimamente. Esta cidade está com muitas cabeças ocas circulando por aí, e temos muitos idiotas para preencher o espaço vazio com idéias simplórias — João Nepomuceno continuou sua refeição, alheio ao tom sombrio do rabino Joab. Encheu a colher com purê de batata.

— Kalaew está envolvido.

— Ele está morto, Joab. Os próprios nazireus de Viena me garantiram isso.

— O maldito sobreviveu, encontre-me amanhã na Sinagoga Pinkas, após o pôr do sol, e eu explicarei melhor.

O rabino Joab ben-Abraham ben-Saul levantou-se e deixou o restaurante em ritmo acelerado. João Nepomuceno conhecia o rabino há muito tempo, e sabia que aquele homem mantinha-se sempre muito bem informado.

Na tarde seguinte, quando o sol poente tingia as vidraças dos prédios de vermelho, um carro velho, mas de lataria impecavelmente branca, estacionava na viela lateral que margeava a Sinagoga Pinkas. Aquele veículo, que poderia ser considerado uma relíquia, remontava ao tempo das indústrias comunistas, e ainda rodava incólume ao tempo graças aos talentos em mecânica de seu dono.

João Nepomuceno fechou a porta do carro, e dirigiu-se à entrada principal da sinagoga, já quase totalmente coberta pela sombra do espigão vizinho. O atendente, um jovem rapaz de barbas ruivas encaracoladas, levou-o até os aposentos do Rabino Joab.

Após a quarta batida, o velho de barba escura abriu a porta, recebendo seu hóspede com seu ar taciturno característico.

— O Profanzeichen está agindo em toda a Europa Central. Kalaew retornou à República Tcheca, e virá atrás de nós.

— Seus confrades austríacos garantiram...

— Os Nazireus de Viena se enganaram! — o impacto do grito foi completado por um soco na mesa tão forte que a tábua de madeira reforçada rachou. — Absalon ben-Ludwig está morto. Josef ben-Caius está agonizante. Os aliados do nazista intervieram e salvaram o maldito.

João Nepomuceno limitou-se a fechar os olhos, como se entoasse uma prece silenciosa. Joab ben-Abraham interpretou a mudez como um sintoma de perplexidade, e preferiu traçar uma estratégia de ação.

— Devemos evitar o confronto direto com os soldados de Satã. Os redutos do Profanzeichen em Praga são bem conhecidos. Vamos buscar um refúgio seguro, e planejar a melhor defesa!

— NÃO.

O tom da voz do jovem guerreiro estava inteiramente modificado. Ele não parecia mais o rapaz descontraído do dia anterior. Seu olhar parecia vidrado, como se fitasse dimensões invisíveis além dos sentidos humanos.

— Devemos aguardar por eles. Eu sei que Kalaew virá atrás de mim.

— Você não pode enfrentá-lo sozinho!

— Talvez não possa. Mas não posso deixar que o medo me impeça de agir.

— Isto é uma sandice. Não posso permitir.

A mão pesada do Nazireu pousou sob o ombro de João, imobilizando-o com a força de um torno mecânico. Nepomuceno não esboçou nenhuma esquiva.

— Você pode ter vários séculos de vida, mas nem mesmo você pode enfrentar sozinho os ubermenschen!!!

Nepomuceno continuava imóvel, incapaz de se livrar do abraço sobre-humano do rabino. Joab ben-Abraham era um nazireu, cujo estilo de vida ascético e extremamente regrado garantia habilidades físicas sobrenaturais. Jamais cortara o cabelo, e mantinha uma dieta pontuada por diversas restrições. Era um legítimo continuador da linhagem de Sansão.

João, ao contrário, era um Triunfante, e o Rabino Joab pouco sabia sobre as origens daquele misterioso rapaz. Mas sabia que há quase oitenta anos atrás, quando era apenas uma criança, sua vida fora salva pelo mesmo João Nepomuceno, que mantinha as mesmas feições joviais de quase um século atrás. Nepomuceno abaixou a cabeça, e relaxou o corpo, capitulando diante da força irresistível do nazireu.

— Eu salvei sua vida, Joab, deixe-me ir, você me deve isso... — suplicou o Triunfante.

— Justamente em prol de nossa longa amizade é que eu não devo deixá-lo ir. Seria suicídio esperar pelas bestas-fera de Kalaew. Perdoe-me.

Os dedos nodosos do gigante envolveram o pescoço de João, pressionando-o para interromper o fluxo sanguíneo. O corpo do Triunfante relaxou, os braços pendendo inertes. Joab sustentou o corpo do amigo, com cuidado, e preparou-se para carregá-lo para o outro quarto, onde colocaria seus dois aprendizes, também nazireus, para vigiá-lo.

O súbito descuido foi o suficiente para que João Nepomuceno, despertando de seu fingido torpor, se desvencilhasse do abraço hercúleo, e com uma pirueta, abrisse caminho até a janela. Joab, igualmente dotado de uma agilidade sobrehumana, alcançou o amigo com um pulo, mas antes que pudesse agarrar com o Triunfante pelo calcanhar, sentiu-se a vista nublar-se, como se coberta por um véu. Os cacos minúsculos de vidro no assoalho indicavam que Nepomuceno lançara alguma cápsula no chão, libertando algum tipo de substância gasosa, inodora e incolor. Antes que o metabolismo imune do nazireu neutralizasse o efeito de cegueira, João Nepomuceno já fugia pela viela, em desabalada correria.

Já em seu carro, o Triunfante seguia para a mina de prata abandonada, em cujos túneis residia. Pressentia que os guerreiros demoníacos do Profanzeichen já conheciam seu paradeiro, e que não tardariam em encontrá-lo. Contava com a Sorte Divina para guiá-lo, e não havia bênção maior do que colecionar adversários invencíveis.

“Vitória ou Morte”, era o lema dos Triunfantes. João Nepomuceno era um soldado em uma guerra sem fim. Não lutava para garantir a própria segurança, mas sim para mantê-la eternamente sob risco.

Por seiscentos anos, ele foi feliz em viver sob este lema.

Por mais seiscentos ele lutará, se for preciso.


ECOS DE PRAGA I: VITÓRIA OU MORTE foi escrito por Simões Lopes, inspirado no Netbook A CIDADE DE PRAGA, de Marcel Herrero e Flauberth Carvalho.

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