segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Rebelião 98: Cinza e Azul


ECOS DE PRAGA III

Quando entrou na LAN House Khaos 99, Václava chegou a pensar que o sistema de calefação estava desligado, tamanho o frio que ali fazia. A luz mortiça envolvia tudo em uma penumbra ligeiramente azulada. Num salão que parecia vazio, dois adolescentes obesos com aspecto nerd pareciam mergulhados em um transe hipnótico. Se não fosse o nervoso piscar de olhos, ela podia jurar que os garotos estavam congelados. A silhueta esguia de Vladmir Palovek, o único funcionário da loja, podia ser vista por detrás do grosso vidro fumê que escondia o mezzanino. A altura, a magreza e a postura exageradamente curvada fizeram Václava lembrar-se de um louva-a-deus. Contendo o riso, dirigiu seus olhos para o lado oposto da sala, onde identificou a figura inconfundível de Kamila Fric, a atual proprietária da Khaos 99. Enormes alargadores perfuravam seus lóbulos, um azul e outro verde, combinando com a cor de suas longas unhas e de das mechas de cabelos tingidas e empasteladas de gel brilhoso. Um decote generoso expunha o volume generoso dos seios tatuados com linhas negras imitando arame farpado. Os ombros nus mostravam tatuagens da “Noiva de Frankenstein” em poses sensuais, enquanto as costas da mão esquerda ostentavam um enorme ENDZEIT — fim dos tempos, em alemão — gravado em caligrafia gótica. Na outra mão, havia outra palavra tatuada, mas Václava não se interessou em ler.

O contraste entre ambas não podia ser maior, ao contrário da exuberância de Kamila, Václava vestia uma roupa cinza-escura discreta, e os cabelos negros encaracolados sem brilho estavam cobertos por um gorro surrado de lã azul. Os olhos tristonhos castanhos vasculharam um bloquinho de anotações tirado do bolso do casaco em busca de algo importante. Antes que ela abrisse a boca, Kamila adiantou-se:

— Václava. Eu me lembro de você na Praça Velha. Pode chegar...

A moça de casaco cinzento e jeito tímido sentou-se ao lado da mulher tatuada, que operava um computador no fundo da sala, longe dos olhares vorazes dos nerds do outro lado.

— Estou aqui para fechar o trato. Eu...minha...eu representou alguém que... — as palavras saíam com dificuldade.

Kamilla limitou-se a apontar para a tela do computador, e abri um aplicativo de texto, onde digitou o que parecia ser um início de conversação:

ELIŠKA MANDOU VOCÊ AQUI. EU A CONHEÇO DE LONGA DATA. IMPORTA-SE DE EU RESPONDER ASSIM, POR PRECAUÇÃO?

Václava limitou-se a acenar positivamente com cabeça. Ela mostrou uma folha arrancada de seu bloco, onde havia o desenho de um estranho símbolo místico. Os dedos de Kamila correram pelo teclado, em resposta:

ENOQUIANO OU ALGUM ALFABETO CORRELATO. UM DOS SÍMBOLOS QUE DO ESPELHO DE JOHN DEE.

Václava aproveitou o mesmo teclado e digitou a resposta imediatamente:

ELIŠKA SABE ONDE O ESPELHO DOS QUATRO ELEMENTOS ESTá E QUER FAZER UMA TROCA.

Kamila franziu a testa e torceu o nariz. A mulher de cabelos vermelhos que passava boa parte de sua vida na LAN House era uma nefilim da Linhagem dos Guerrilheiros. Desdenhando da informação, respondeu secamente:

FICA NA CAPELA DOS ESPELHOS. EU SEI.

A outra mulher replicou:

AQUELE ESPELHO É FALSO. O VERDADEIRO ESTÁ BEM LONGE.

Kamila olhou fixamente nos olhos de Václava. Estava usando seus poderes para detectar mentiras. A serva de Eliška estava dizendo a verdade, ou pelo menos acreditava piamente estar dizendo a verdade. Não custava testar.

O QUE ELA QUER DE MIM? — digitou, apagando em seguida.

Václava pensou um pouco antes de responder:

AJUDA PARA COMBATER UM INIMIGO EM COMUM.

Kamila limitou-se a acenar, instando Václava a prosseguir.

VÍBORA PUSTULENTA, A SHEILIM, ACHOU UMA CRIANÇA HÍBRIDA NUM ACAMPAMENTO CIGANO. OS LACAIOS DELA ACHARAM O ESPELHO LEGÍTIMO.

Kamila abriu um sorriso. Václava digitou mais uma frase:

TRAGA-NOS O ESPELHO EM TROCA E NÓS INDICAREMOS O PARADEIRO DA CRIANÇA NEFILIM.

A Guerrilheira refletiu sobre o trato. Sua resposta tinha uma pontinha de ironia:

PORQUE NEGOCIAR COM UMA QUIMÉRICA? QUE GARANTIA EU TENHO DE QUE ELA VAI CUMPRIR SUA PARTE?

A resposta de Václava veio em voz alta:

— Você não tem escolha. Basta aceitar ou negar. Sabemos que você não recusaria um desafio tão tentador. Ou será que você está com medo? Kamila Fric é uma medrosa?

A Guerrilheira bufou de irritação. Inesperadamente, tascou um beijo na boca da emissária de Eliška, que recuou com um ar de nojo. Um dos garotos, que olhava a cena de soslaio, soltou um risinho libidinoso.

— Ofendida? – A garota tatuada abriu um sorriso de satisfação.

— É...isso..não... — Václava procurava as palavras, mas não as encontrava.

— Considere o beijo como um sim à sua proposta. Não pense que tenho algum interesse em você. Fui lésbica nos anos 90, mas enjoei, e agora prefiro algo do tipo hétero, entende? E mesmo que voltasse a gostar de mulheres, você não faz meu tipo.

Václava continuou balbuciando, sem conseguir falar algo.

Game over, baby, se manda! Diga à sua mestra que eu topo o desafio.

A serviçal quimérica saiu apressadamente da LAN House, enterrando o gorro felpudo na cabeça assim que sentiu a lufada gelada de vento nas orelhas levemente pontudas. Puxando um lenço do bolso, limpou a boca esfregando com tanta força que quase arranhou os lábios. Václava recolheu o lenço com cuidado guardando-o num saquinho plástico lacrado que sempre trazia consigo. Mais do que o beijo em si, o que mais lhe causara ojeriza fora o contato com a aberração cósmica que aquela nefilim simbolizava. Os bruxos quiméricos como ela e sua misteriosa mestra Eliška entregavam com uma devoção quase sacerdotal ao estudo dos mistérios do Universo, especialmente aqueles que ultrapassavam todos os limites estabelecidos pela Ciência ordinária. Os quiméricos eram os maiores conhecedores dos segredos mais sombrios da Criação, e nem mesmo os mais sábios dentre eles jamais haviam conseguido encontrar uma hipótese plausível para explicar a presença de seres híbridos caminhando por Adamah, e nem conseguiam entender se seus progenitores eram anjos do Sheol ou do Shamaim. Não eram seus dotes sobrenaturais que provocavam o sentimento de extrema repugnância nos quimérios, mas sim o fato de que sua real natureza não podia ser compreendida ou explicada. Enquanto Václava retornava para o esconderijo de sua senhora, sentia o lenço como uma espécie de trófeu. Nele estavam restos de saliva e de suor, — e com alguma sorte, preciosas células mortas de pele — de uma nefilim, um precioso — e inesperado — espólio a ser analisado e testado minuciosamente. Seus vastos conhecimentos em alquimia lhe seriam de grande valia, e ela esperava fazer algumas descobertas sobre as propriedades bioquímicas daquela criaturas.

Enquanto a mulher de casaco cinzento desaparecia na multidão que embarcava no trem, bem longe, a três quarteirões de distância, a Guerrilheira penteava as próprias mechas coloridas, e pensava nas consequências da inesperada aliança com os quiméricos de Eliška. Sabia dos riscos que corria, mas não podia permitir que aquela criança cigana, sua pequena “irmã”, caíssem nas garras dos inimigos dos Filhos da Segunda Rebelião. Só aceitara o trato, porque sabia — através de outras fontes de informação — que tal criança realmente existia, e que seu nome era Habriela. Ao beijar a quimérica, ela deixara em sua pele uma marca que poderia ser rastreada e detectada a distância, o que permitiria acompanhar os passos dos bruxos mesmo à distância. Kamila lembrou-se de contatar Benita Vernes, a Escriba, para verificar se esse Manifesto recém-manifestado era algo inédito ou já era algum dom catalogado pelos Escribas. Mas isso devia ser deixado para depois. No momento, sua real preocupação eram os dois clientes da loja que insistiam em não sair da loja. Kamila mandou Palovek comunicar aos dois nerds preguiçosos que o horário de funcionamento estava encerrado. Já acostumados com o tom de voz exageradamente arrastada do funcionário, os garotos insistiriam em uma prorrogação do prazo. Para mostrar que qualquer resistência seria inútil, Kamila simplesmente desconectou os cabos de rede. Um dos meninos tentou reclamar, mas a imponência dos 1,85m da dona da loja, associada a um tom de voz convicto e uma fisionomia furiosa, fez com que eles acabassem convencidos a se retirar.

Livre de seus inoportunos clientes, Kamila dispensou seu funcionário e foi para o seu escritório pessoal, para planejar suas futuras ações frente aos perigos que se anunciavam.

Enquanto as luzes azuis de neon do letreiro da Khaos 99 acabavam de ser desligadas, alheios ao frio congelante que afligia os transeuntes da rua, os adolescentes limitaram-se a um breve diálogo.

— A Nefilim não percebeu nada.

— Johana estava certa.

— Como sempre.

ECOS DE PRAGA III: CINZA E AZUL foi escrito por Simões Lopes, inspirado no Netbook A CIDADE DE PRAGA, de Marcel Herrero e Flauberth Carvalho.

Voltar para o Universo Germinante

Nenhum comentário: