domingo, 9 de dezembro de 2007

Maytréia 5: Conseqüências Infantis


Engraçado como nossa memória brinca com a gente. Aqui estou eu, numa destas bancas de jornal que você entra e fica meio perdido, procurando entender onde ficam as revistas de que gosta lembrando de uma coisa que me aconteceu na infância. Na verdade, eu nunca esqueci o que aconteceu – principalmente pela forma com que me faz lembrar – mas hoje, especialmente depois do triste acontecimento de que tomei conhecimento, me vi lembrando de detalhes que normalmente teriam ido embora, mergulhando naquele profundo esquecimento de névoas espessas chamado “passado”.


Éramos crianças há 20 anos atrás. Esta afirmação parece óbvia, mas na verdade desejo dizer que éramos psicologicamente infantis. Tínhamos aquelas brincadeiras cruéis que somente crianças conseguem brincar com tanta persistência e satisfação. Éramos, na verdade, crianças terríveis. Jogávamos pedras em telhados e em pedaços de vidro que eram colocados sobre os muros para que ninguém os pulasse, batíamos em crianças mais novas, fazíamos guerra de pedras e ovos, torturávamos as meninas puxando o seu cabelo ou jogando chicletes nele... chicletes que também serviam para colocar em lugares onde os incautos sentavam em cima.


Mas éramos crianças. Não entendíamos o que estávamos fazendo. Achávamos divertido, fazendo as experiências que as crianças fazem ao descobrirem a manipulação das emoções alheias; geralmente com um toque de maldade. Se isso serve de desculpa – o que pessoalmente não acho – não tínhamos a menor noção dos danos que causávamos à vida de outras pessoas. Mesmo quando apanhávamos, parecia injusto. Afinal de contas, pensávamos naquilo apenas como uma diversão “inocente”.


Com exceção de Ronaldo e Mixirica.


Eles eram os mais velhos da turma e os que tinham a maioria das idéias terríveis que colocávamos em prática (ou pelo menos assim eu me lembro...) e pareciam saber o que provocavam. Tinham uma espécie de cruel expectativa em satisfazer algum instinto ruim que alimentavam. Mesmo como crianças, nós percebíamos que eles eram... diferentes. Se existiam líderes e mentores de nossas pequenas atividades marginais estes eram Ronaldo e Mixirica. E eles se orgulhavam disso.


Uma de nossas vítimas favoritas num determinado verão era o homem que conhecíamos como “O Velho”. Simples assim.


Não sabíamos e – pelo que entendo – nunca viemos a saber o seu verdadeiro nome. Era apenas “O Velho”. E como perseguimos O Velho naquelas férias: xingávamos, tacávamos coisas nele, ficávamos cantando musiquinhas ofensivas enquanto dançávamos a sua volta. Ele parecia nos ignorar, mas – com aquele instinto infantil – nós percebemos que ele ficava magoado... e isso só nos incentivava mais. Como eu já disse; éramos crianças terríveis...


Ronaldo e Mixirica eram os que mais atormentavam o pobre senhor. Estavam sempre a espreita do momento em que ele apareceria na rua para começar a tortura e davam gritos de verdadeiro êxtase enquanto pulávamos a sua volta com nossas brincadeiras cruéis.


Mas um dia eles passaram dos limites. Eu já comentei que nós atirávamos coisas no Velho, mas eram sempre coisas com pequena possibilidade de machucar. Quero dizer, machucar de verdade... sei que estou me justificando, mas tínhamos mesmo esta consciência. Atirávamos bolinhas de papel, giz ou pedacinhos de plástico mole – sem força e sem direção – mais como forma de atormentar mesmo. Mas neste dia Ronaldo e Mixirica resolveram atirar pedras. Para aliviar um pouco o lado de meus ex-colegas de infância, percebemos que eles não queriam acertar o Velho. Queriam assustar, mas apenas isso.


Mas algo estranho aconteceu.


Claramente, o Mixirica atirou uma pedra para que esta acertasse bem acima do velho, mas ela simplesmente mudou sua trajetória em pleno ar e acertou o rosto do pobre homem. É claro que minha imaginação infantil pode ter pensado isto; é claro também que esta pode ser uma desculpa que pensei – e penso – para a maldade de Mixirica, mas diante do que soube há poucos minutos não consigo deixar de pensar se isso não foi exatamente assim como estou lembrando agora...


Nós ficamos apavorados, é claro. O Velho deu um grito e cobriu seu rosto que começou a sangrar imediatamente. Nós saímos em disparada. Cada um foi para a sua casa esperando a hora de alguém contar tudo aos nossos pais e mais uma surra começar. Mas isso não aconteceu. Vi, pela janela do meu quarto (enquanto minha mãe comentava que se eu estava quieto em casa àquela hora, era por eu ter aprontado mais alguma e que eu me arrependeria, etc...) um homem de uns 30 anos chegar até a casa do Velho. Nunca vimos ele receber nenhuma visita, o que me provocou estranheza.


A noite chegou. E como não fomos delatados em mais uma de nossas maldades, reunimos coragem para ficarmos na rua.


A maioria de nós não queria mais perturbar o Velho, apenas Ronaldo e Mixirica continuavam em sua defesa com argumentos de pouca valia como o fato de Velho ter sido “burro por não desviar da pedra” ou “que velhos estranhos tinham mais é que se ferrar mesmo”. Contei sobre o misterioso visitante. Enquanto conversávamos, volta e meia olhávamos para a luz acesa na sala da casa dele, numa expectativa tensa e mal disfarçada. Um de nós propôs uma ida até a casa dele para pedir desculpas, mas foi prontamente rechaçado pelos nossos “líderes”. Assim a conversa seguiu até a hora em que levamos um tremendo susto.


O homem que havia visitado o velho estava ao nosso lado.


Estávamos tão tensos que nem percebemos a sua aproximação. Ele simplesmente nos encarava com um certo ar – não tenho outra palavra melhor – divertido. Pensamos na mesma hora que ele era um parente do Velho e começamos a balbuciar desculpas e coisas assim, Ronaldo imediatamente acusou Mixirica que respondeu com acusações idênticas. Mas tudo o que o homem nos disse foi:


Quero apenas contar uma coisa para vocês.”


Acredito que o sentimento de culpa misturado com a idéia de uma punição iminente simplesmente nos fez ficar quietos e ouvir o que ele tinha a dizer. E ele falou a última coisa que qualquer um de nós esperava:


“Vocês lêem quadrinhos? Conhecem o Super-Homem?”


Entre surpresos e acrabunhados, sacudimos a cabeça positivamente.


“Ele era um de meus heróis favoritos. Mas foi só depois de alguns anos lendo que me toquei de uma coisa: o Super-Homem nunca deixa de ser o Super-Homem. Nem quando ele se disfarça de Clark Kent. Vocês sabem o que pode acontecer se alguém como vocês soca o rosto do Super-Homem?”


Mixirica responde na mesma hora, meio empolgado:


“Quebra a mão, prá deixar de ser mané!”


“Exato! E se socar o Clark Kent?”


“Bem... acho que a mesma coisa...”


“Sei... percebem isso? O Clark Kent parece humano, mas não é humano. E ele tem que se fazer de idiota o tempo todo, evitar o tempo todo ter conflitos com os outros, pois isso pode revelar quem ele é realmente...”


“E daí?” Desafiou Mixirica. “Quem vai se meter com o Super-Homem? Se eu fosse ele mostrava prá todo mundo quem sou.. e arrebentava de porrada quem se metesse comigo! Para mim, esse papo de se disfarçar de gente comum é coisa de mané!”
A idéia nos empolgou, mas antes que nosso entusiasmo crescesse muito, o homem disse:


“É mesmo? E quem protegeria sua mãe quando você não estivesse por perto? E sua irmã? Você tem uma irmã não é? Mesmo o Super-Homem tem inimigos... e inimigos tão poderosos quanto ele... doidinhos para se vingar em quem puder.”
Silêncio total. Depois de alguns segundos, Ronaldo fala:


“Eu num gosto da minha irmã mesmo...”


“É mesmo? Você não gosta de ninguém?”


Outra vez, silêncio total. E desta vez o homem não nos deu tempo para pensar.


“Mas vamos mais longe. Imagine as pessoas sabendo que você é o Super-Homem. Elas teriam medo de você... você poderia matar todas elas com um espirro! E se você ficasse nervoso então... bastaria uma vez...”


Aquilo nos assustou. Em nossa imaginação infantil, vimos um ser completamente indestrutível resolvendo nos castigar...


“Por isso, o Clark Kent é tão importante. Ele lembra ao Super-Homem que existem pessoas comuns... frágeis... que podem ser destruídas com um sopro...”


Ele nos observou mais um pouco; e então arrematou:


“Eu li numa revista, certa vez, que ele ficou muito nervoso. Então fugiu para o Pólo Norte... na Fortaleza da Solidão... e extravasou sua raiva num grito para não ter que bater em ninguém...”


Já estávamos devidamente aterrorizados e hipnotizados pela narrativa. E o homem soube aproveitar bem a pausa dramática.


“Ele destruiu um iceberg com o grito.”


Na nossa imaginação, víamos blocos de gelo do tamanho de mundos (apesar de não saber exatamente o que era um iceberg, já tínhamos ouvido falar deles...) serem destruídos pelo simples grito de um deus encarnado. Contudo, o homem que nos conduzia com maestria até aquele momento, soube fechar a sua lição com chave de ouro. Ele nos encarou um-a-um (e, depois disso, nunca mais esqueci desta conversa...) e arrematou:


“E quer saber de uma coisa. Existem muitos Clark Kents por aí. Fingindo-se de fracos ou estúpidos. Todos capazes de destruir as pessoas comuns com extrema facilidade. Eles têm seus inimigos poderosos também. E sabem o que estes “Clark Kents” querem das pessoas comuns?”


Sacudimos as cabeças negativamente. Olhos arregalados.


“Que possam defender o mundo em paz. Que não sejam enfurecidos.”


O homem não disse mais nada. Simplesmente se virou e saiu. Ficamos olhando meio que aterrorizados para ele que se afastava e – de soslaio – para a casa do velho. Ele parecia estar na varanda e, na minha imaginação infantil, ele parecia sorrir diante da estranha lição que acabávamos de receber. É claro que estava longe demais para ele ouvir algo ou para que nós pudéssemos perceber seu sorriso. De qualquer forma, o homem conseguiu o que queria. Naquela noite, fomos todos para casa logo depois que ele partiu... em silêncio solene e assustado.


O Velho se mudou no dia seguinte. A maioria de nós continuou a fazer as traquinagens, mas a coisa foi ficando cada vez mais sem graça. Quando as aulas voltaram, já éramos diferentes. Nós simplesmente crescemos. Menos Ronaldo e Mixirica, estes continuaram os mesmos até minha família se mudar cerca de 1 ano depois.


Agora, 20 anos depois, seguro o jornal que comprei após ver a sua primeira página enquanto passava pela banca. É um destes jornais sensacionalistas, cujo principal teor de suas reportagens são a violência e o sexo. Eu normalmente não compro este tipo de jornal, mas não pude evitar fazê-lo, quando vi a notícia principal:


RONALDO CRUEL E MIXIRICA MORREM EM EMBOSCADA DA POLÍCIA


Meus “amigos” de infância parecem não ter aprendido a lição. Ver a foto deles cobertos de sangue e caídos no meio de uma estrada qualquer começou a me avivar a memória. Mas o que disparou tudo em seus mínimos detalhes foi que assim que peguei o jornal um velho ao meu lado disse:


“Esses não aprendem não é mesmo?”


Olhei e reparei um velho ao meu lado, se esticando para ler a manchete. Ele me pisca um olho e completa:


“Quando não se sabe com o que se está lidando, dá nisso!”


Com esta frase enigmática, vai embora. Esta frase me fez voltar o fluxo total da minha memória, daquilo que ocorreu 20 anos atrás.


Pensado bem, ele realmente lembra... não, não. É imaginação minha. A esta altura O Velho já deve estar bem morto. Mas admito que foi um encontro incomum, que me fez lembrar de outro encontro incomum. E que me deixou com um pensamento bastante irônico.


Seria o Super-Homem imortal? Se assim fosse, Clark Kent também seria...


CONSEQÜÊNCIAS INFANTIS foi escrito por Danilo Faria




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