domingo, 9 de dezembro de 2007

Rebelião 4: Preguiça




Eles olharam sonolentos para o teto, que saia e entrava em foco conforme abriam e fechavam os olhos. Qualquer esforço para mover-se era infinitamente doloroso, como se cada um de seus membros pesasse tonela-das infindáveis. Às vezes, o roçar das vestes de couro de um deles era ouvido, mas tão suave que mais parecia causado pela respiração que por uma tentativa deliberada de movimentação. Num ambiente vazio de sons, passos ecoam altos como batidas de marreta - o ranger da porta penetra pelos sentidos semi-intorpecidos dos jovens espalhados pelo chão do quarto. Um deles emite um grunhido de desagrado, como uma criança incomodada no melhor de seu sono.

"Seis jovens idiotas". Anderson caminha displicente pelo quarto, e pisa acidentalmente na mão esquerda de uma menina magra e abatida, parecendo ter uns dezenove anos - ao contrário dos outros protagonistas da cena, estava morta. Ele olha com certo desinteresse o corpo ferido e mutilado, cheio de inscrições profanas ta-lhadas na carne rosada. Repentinamente, uma coisa chama sua atenção: encima de um exemplar velho de O Livro da Lei e do Tarô de Crowley está aberto um volume de páginas amarelecidas e puídas, cujas inscrições mostram uma rebuscada caligrafia em latim. Com cuidado o Acólito vira a capa, onde se lê Grimorium Stelaræ. Ele dá um sorriso maroto, e arrancando a capa do Livro da Lei para marcar a página em que o Stelaræ estava aberto. Uma sutil mudança na atmosfera do quarto chama sua atenção por um momento, e um hálito frio e pesti-lento, como que exalado de um túmulo recém-exumado, dirige-se a ele: "Descanse… hmm… fique conosco… não está cansado?"

Anderson olha em volta, franzindo o cenho como se avaliasse a proposta de seu interlocutor invisível.
"Essa bobagem não vai funcionar comigo, chefe. Mas você poderia ter a gentileza de me dizer seu no-me". Um silêncio cauteloso se faz, enquanto o Acólito se sente avaliado por olhos lânguidos, cansados de enxer-gar.
"Hmm... não é bom brincar... comigo...mestiço. Ofensas… hmm… pessoais me darão … direitos… sobre você…", é a resposta que o nefilim recebe. "Ah! Eu estaria fora daqui antes que você decidisse o que fazer comigo. Mas fique tranqüilo chefe - minha boa e velha mãe não criou idiotas". Um novo silêncio se segue, mas Anderson sabe que o velho demônio já entrou em seu jogo.
"Nah… glar… conheci seu… pai…"
"Tenho certeza de que passaram divertidíssimos momentos na sauna, Nahglar. Qual dos pequenos im-becis fez isso?"
"O… rapaz… mais velho. Ele… tem uma boa… pronúncia reconstituída…"
"Palmas para ele. Normalmente estes satanistas de meio-período preferem a pronúncia romana... você sabe, parodiando o latim eclesiástico."
"Você… não…não vai… tirá-los… de mim?", pergunta o demônio, com a cautela de uma criança que tenta esconder um doce. O nefilim olha em volta, avaliando a cena. Ele temia que isso acontecesse - sabia que se o Stelaræ não estivesse nas mãos de um simples colecionador de antigüidades, tinha grandes chances de estar sendo usado, e só idiotas conjurariam algo descrito num livro que era manuseado com cuidado até pelo mais experiente dos bruxos. Se Nahglar estava neste livro, isso quer dizer que ele não era nenhum meiri'im fracote.
"… Então?"
"Eu?" - e olha de esguelha para a menina morta. Certamente ela tinha uma família… amigos, talvez um namorado que sentisse sua falta (sinceramente, Anderson não estava nem aí para nada disso, desgraças acon-tecem o tempo todo. Mas ele precisava de uma desculpa para largar cinco garotos com um demônio). Além do mais, o mundo seria melhor sem alguns lunáticos por perto, e estes moleques só tiveram o que queriam - "Não vamos desperdiçar o enorme trabalho deles, estudando gramáticas latinas para estar algum tempo com você… ou com qualquer dos horrores desta enciclopédia" - ele acrescenta em tom casual. "Estou aqui pelo livro."

O Acólito caminha resolutamente até a porta, convencido de estar fazendo a coisa certa (Anderson a-prendeu a muito tempo que enganar a si mesmo é a melhor forma de manter sob controle este demônio maldito e suicida que os outros chamam de consciência).
A porta do quarto encosta-se novamente, e uns poucos gemidos (de dor? De desespero?) elevam-se sem muita convicção.
"Vamos… continuar?"

Repentinamente a porta é aberta de novo. Os olhos baços dos garotos se voltam, num esforço lento e doloroso, para Anderson. Ele os encara por um curto momento, e sorrindo, desliga o interruptor da luz, deixando o quarto numa penumbra confortável, quase aconchegante.
"Para não atrapalhar seu sono".
A porta se fecha, e seus passos novamente se distanciam, até se tornarem um eco silencioso reverberan-do no ar.
Cinco crianças ressonam juntas, embaladas no sono do demônio.
PREGUIÇA foi escrito por Renato Simões

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