domingo, 9 de dezembro de 2007

Rebelião 6: Cobiça


Ela avança correndo, seus pés mal tocando o terraço, seu corpo delgado castigado pela forte chuva. Ela tem uma perfeita noção do abismo que se aproxima, não graças a sua visão, mas por sentidos místicos inerentes a sua raça. Ela salta sobre o vazio, se deslocando a uma velocidade alucinante, sentindo seu alvo se aproximar. Quando chegar ao seu destino, ela precisará lutar como jamais fez... mas não são assim todos os seus dias?


Os sentinelas estão postados frente à entrada do templo, concentrados e imóveis. Repentinamente, sentem uma suave modificação na atmosfera, uma espécie de interferência - como se alguém em algum lugar tivesse ligado uma televisão. No segundo seguinte, a janela no final do corredor se rompe com estrépito e uma mulher entra voando por ela. É tarde demais, porém - eles já estão preparados e prontos para combater.


Em meio ao seu vôo ela atinge um dos guardiões com tanta força que o arremessa cerca de dois metros em direção a parede, com um ruído seco de cerâmica quebrando-se. Parada em meio aos seus antagonistas, ela grita suas ordens aos shedim que rodopiam fora do prédio. Vidraças voltam a se quebrar, mas agora em todas as partes, arremessando vidro para dentro do prédio, enquanto água e ventos cortantes vem ao encontro de sua se-nhora. Feridos pelo vidro, ofuscados pela chuva e castigados pelos ventos frios, eles avançam contra a invasora, como é seu dever. Cinco são eles e não se importam com suas vidas, contanto que os Mestres da Ordem consi-gam clamar pelo Prior da Voz.


Os cânticos entoados dentro do templo não são perturbados pelo ruído de vidro se quebrando ou pelos brados de luta da mulher (guardiões da ordem lutam em silêncio, como lhes ensinam os sacerdotes). O cheiro adocicado e suave do incenso causa um leve estado de torpor no coro, realçado pelo som suave e calmante de seus hinos. Dentro do templo a arquitetura é extemporânea - quem visualiza as colunas altas, sustentando um teto octogonal, ornado de anjos barrocos não diz que este é o topo de um freqüentado edifício comercial; quem olha para os raros quadros, exibindo imagens canônicas, não acredita que sejam parte importante de uma ritualís-tica; aqueles que convivem com os sacerdotes do coro jamais imaginariam homens de negócios, ricos e podero-sos, vestidos como monges da idade média; e por fim, aqueles que ouvissem as possantes vozes dos Mestres jamais acreditariam que eles são humanos. Dispostos em cinco eles estão, sobre uma grande cruz formada por azulejos com incrustações em ouro - quatro deles nos quatro braços da cruz, e um em seu centro. Este está trajado com mais fausto que seus companheiros e parece mais imponente. O sacerdote do braço norte ergue uma lança, e grita altissonante:


- Em nome do Pai clamo Seu Mensageiro, e ofereço-Lhe a vida de meu coração! - A ponta da lança, de prata bela e reluzente, começa a brilhar fantasmagoricamente.
O sacerdote do braço sul ergue um prego, grande, polido e brilhante, e brada:


- Em nome do Filho imploro A Presença, e ofereço-Lhe o caminho que até aqui já trilhei! - o prego começa a brilhar, rubra e assustadoramente como uma brasa, tingindo de tons sinistros o rosto do sacerdote.
Os sacerdotes dos braços leste e oeste erguem também pregos argênteos, e clamam em uníssono:


- E Em nome do Espírito Santo rogamos Teus conselhos, oferendo-Lhe as realizações de nossos bra-ços fortes!


- simultaneamente, os pregos brilham, e é a vez do quinto sacerdote, ao centro da cruz, invocar:


- Ofereço-me como a Copa da União, pronta para receber o Sangue do Divino Sacrifício. Toma meu corpo para realizar teus prodígios, Tu, que te sentas à direita da Voz de Deus! - No mesmo instante raios par-tem da lança e dos pregos, o atingindo e fazendo brilhar. De entre duas colunas na cabeceira da cruz emerge um ancião, com um brilho de adoração extrema nos olhos. Porém, antes que ele possa dizer qualquer coisa, as fortes portas de carvalho do templo se rompem, e um corpo é jogado com força, atravessando o templo, descrevendo um arco acima dos sacerdotes postados sobre a cruz, acertando o pobre velho em cheio.


- Eu interrogo aquele que temo, e que tuas palavras tragam-me a divina verdade, Ave, SANDALFON! - grita a mulher, quase sem fôlego. Finas gotículas d'água adentram a nave trazidas por uma brisa gélida. O coro emu-dece. O velho cai em pranto mudo, o sangue de sua própria ferida e do cadáver sobre seu corpo tingindo suas vestes. Os sacerdotes sobre a cruz mudam sua expressão de esforço para dor, e o oráculo de Sandalfon fala:


- BENDITO TODO AQUELE QUE BEBER DE MEUS LÁBIOS AS PALAVRAS. OUSASTE DEMAIS, FILHA DE MEU IRMÃO.


- Estou ciente das conseqüências de meus atos, e não temo o ódio da Ordem, meu tio.


- CONSPURCASTE O TEMPLO DE MINHA ADORAÇÃO, E FERISTE HIEROFANTES DE MINHA ORDEM. ACHAS QUE JAMAIS TE PUNIREI?


- Nem mesmo eu sou tão ingênua, oh Mensageiro da Voz do Criador... mas o que quer que façais co-migo, deverá esperar o fim das predições.
Os sacerdotes cobrem seus rostos com vergonha e temor. Uma mestiça desafiou um Divino Prior de Mitatron! Mas, por fim, ela está certa - qualquer mal que lhe sobrevenha só terá lugar depois do fim do ritual. O oráculo fica em silêncio por intermináveis segundos, e fala em seguida:


- A VERDADE TE LIBERTARÁ, FILHA DE ALIEL. FAÇA-ME TUA PERGUNTA.
Por um átimo de segundo ela hesita, assustada com o quanto arriscou, com tudo que pôs em jogo para chegar a este momento... mas só por um segundo.


- Vós que enxergais o mundo atemporal, de que lado estará vosso irmão, meu pai, no dia do Juízo?
O rosto do oráculo se distorce numa assustadora expressão de fúria... o brilho ao seu redor torna-se mais intenso, e ninguém na sala, a não ser a Visionária, pode vislumbrar seu rosto flamejante. A cabeça do sacerdote pende abaixada por alguns segundos, mas levanta-se lentamente, movendo-se com pesaroso vagar, de um lado para o outro.


- Oh, pai... você não sabe... - a fúria estampada no rosto não tem mais limites mensuráveis, a carne começa a queimar sobre ossos incandescentes - toda esta guerra maldita... tanto sangue... tanta dor... E VOCÊ NÂO SABE?!!


- NÃO! - a reverberação do brado explode o invólucro carnal do Mensageiro, e as ondas místicas de energia se espalham matando todos os mortais presentes. A derradeira expressão de horror em seus rostos revela a dor de sua partida repentina. Os órgãos internos da Visionária explodem, seu sangue imortal é espalhado pelo chão, seus tímpanos se rompem e sua carne é esmagada por partes do teto e das colunas que desabam sobre seu corpo...


Mas ela sobrevive. Alquebrada e consumida por chamas, ergue-se da ruína recompondo-se até a integri-dade. Cada parte de si volta ao seu lugar, montando o mosaico preternatural de seu corpo - menos é claro, uma parte...


Sanidade.


O castigo de Sandalfon foi deixar à sua sobrinha a dor que uma mente onisciente sente frente ao que não pode conhecer... o ultraje, a marca ígnea da ignorância... o medo do desconhecido... do futuro...


Sentada em silêncio, embalada pelos ventos frios, a Visionária contempla o vazio do futuro.


COBIÇA foi escrito por Renato Simões


Retorne ao Universo Germinante

Nenhum comentário: