domingo, 9 de dezembro de 2007

Rebelião 5: Inveja



Estávamos em 1946 quando vi minha irmã como um simples cristão pela última vez. Eu servia num destacamento do Corpo de Bombeiros, tinha 22 anos, e nosso pai era um homem de princípios rígidos. Às 22h em ponto ele trancava a porta de casa para que eu, mesmo sendo um adulto, chegasse em casa antes que ele fosse dormir.



Minha irmã de doze anos ficava acordada (escondida, obviamente) e destrancava a porta para que eu pudesse entrar em casa. Costumava chamá-la de "corujinha" quando estávamos a sós. Em 15 de novembro da-quele ano, minha irmãzinha não precisou mais importar-se com a porta - durante um incêndio, uma das vigas do prédio despencou, matando dois bombeiros em ação. Um deles era eu. Claro que me levantei cerca de dez horas depois, mas já havia sido resgatado pelos meus irmãos Veneráveis e estava, para todos os efeitos, morto para minha antiga família.



A vida continuou...



Em nome de nossa Obra, rodei por muitos países, conheci muitas pessoas - e coisas - e embora continue fisicamente o mesmo rapaz magro de pele morena e olhos muito grandes, pode-se dizer que sou outra pes-soa desde meu segundo nascimento. Há dezoito anos atrás voltei ao Brasil, e vivia numa metrópole movimenta-da, onde cumpria os desígnios da Mãe. Aconteceu-me algo tão folhetinesco que a princípio pareceu-me mentira. Reencontrei minha irmã, agora uma senhora, com dois belos netos - o menor, com minha pele e meus olhos. Não sei o que ela achou que eu fosse, mas o fato é que não fugiu e não se enganou. Fiquei fascinado com aquela reação - os homens de barro normalmente tentam negar a todo custo o impossível, mas ela não tentou raciona-lizar a coisa em momento algum.



"Eu o esperei naquela noite... você sabe... para abrir a porta". Essa simples declaração me jogou com tanta força contra o passado que perdi o fôlego por um momento. Tudo o que vivi desde aquele dia passou por mim numa enorme velocidade, e me senti então muito velho e cansado. Ela pareceu de algum modo perceber isso. "Casei-me com Mauro... lembra-se dele"? Eu poderia ter feito de tudo naquele momento - poderia esva-necer e fazê-la pensar que era um fantasma, poderia remover suas lembranças a meu respeito, ou mesmo con-vencê-la com uma simples Sugestão do absurdo de suas constatações de que eu era seu irmão mais velho, morto há trinta e nove anos. "Sim, me lembro. Eh, sempre achei que aquele moleque tinha uma queda por você". O moleque tinha então cinqüenta e três anos. Falamos amenidades, eu afaguei a cabeça do menino mais novo, e parti com um sorriso, sem dizer adeus ou me despedir. Lembro que não dormi naquela noite.



Hoje, o menino que se parecia comigo é um homem, e traz seu próprio filho no colo - que parentesco tenho com o filho de meu sobrinho-neto? Outros membros do clã estão reunidos numa bela igreja suburbana, ouvindo as monótonas arengas de um padre enfadado balbuciando o Eclesiastes. Minha irmã morreu há sete dias. No último banco da nave, estou sozinho e pronto a partir, quando alguém senta-se ao meu lado. É ela.



Seu sorriso de súbita compreensão novamente me deixa sem palavras. "Gostaria de me despedir. Nunca dissemos adeus um para o outro, e você... bem, você era meu favorito". Esta declaração tão nua e inesperada faz com que lágrimas me venham aos olhos, e numa atitude maternal para mim tão descabida, ela me beija a testa. "Não chore. Você sabe que estou bem. Eu te amo, adeus". Ela se levanta e passa por uma legião de espectros famintos que parecem não percebê-la. Fico sentado, o rosto ainda úmido por duas lágrimas (não sou dado a ex-plosões expansivas de sentimentalismo). Sim, eu sei que está tudo bem, e este é o problema. Uma mulher subur-bana sem nenhum conhecimento ou importância vai para Deus agora, com sua alma imortal. A paz que a vi desfrutando está além dos limites de meu poder ou de meu conhecimento, e enquanto ela ruma para a luz e para os pais de seus pais, eu devo continuar aqui, cercado pelos mortos, manipulando cinzas amargas como se fossem algo de grande importância. Está tudo bem e não haverá jamais paz para mim.

A vertente mortal de meu sangue retira-se da igreja em pequenos grupos, conversando familiarmente em voz baixa, abraçados, intimamente conscientes de que tudo está bem.
Em nenhum momento olharam em minha direção.
As luzes se apagam, e estou só de novo.



INVEJA foi escrito por Renato Simões

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