sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Rebelião 76: Resplandecente Serenidade


A mulher de porte elegante e membros delicados polia delicadamente uma vasilha de acrílico, enquanto atendia os clientes que mexiam na prateleira de remédios analgésicos. Margarida era seu nome, e os cabelos castanhos emolduravam um rosto moreno com feições levemente orientais. Trazendo em seu sangue várias gerações de miscigenação entre portugueses, italianos, índios, japoneses e africanos, Margarida Acácio das Neves crescera numa família simples de seis irmãos, sustentados a muito custo por um casal de lavradores.

A pequena farmácia de subúrbio de que era proprietária era conhecida nas redondezas pelo eclético estoque composto por remédios alopáticos, homeopáticos, acessórios para cromoterapia, ervas para benzedeiras, florais de Bach e as mais diversas imagens de santos e orixás. Era difícil imaginar algo que não pudesse ser encontrado no Boticário Oriental, nome que a própria Margarida fizera questão de dar à sua loja. Mesmo passados vários anos da abertura da dita farmácia, o nome ainda era motivo de perplexidade para muitos dos vizinhos, que não entendiam o porquê de um nome tão “fora de moda” para um estabelecimento comercial.

Margarida gostava do nome, e assim tocava sua vida. O sustento era garantido, ainda que sem luxos, e sua vida de solteirona parecia toda devotada à sua família de gatos siameses e suas idas freqüentes à pequena Capela de São Lucas, onde passava horas rezando.

— Quanto custa essa pastilha? — perguntou um senhor idoso de fartos bigodes.

— A da caixinha azul ou da caixinha com desenho verde? — disse Margarida, tentando entender o pedido.

Enquanto registrava mais uma venda, Margarida aproveitava para vigiar o garoto de cabelos oxigenados que parecia demorar demais na seção de cosméticos. Ele agachou-se diversas vezes atrás da prateleira, e ela não conseguia perceber o que ele estava fazendo. Ele já havia causado problemas outras vezes, e Margarida estava atenta.

Um frasco de perfume não tão caro estava sendo empurrado para dentro do bolso do casaco com relativa habilidade, e seria relativamente fácil surrupiar mais um dois. O pequeno surrupiador estava tão confiante em sua destreza que não se importou com a chegada de um gato bem gordo de pêlos cor de creme. As extremidades negras comprovavam a raça siamesa do bichano, um dos muitos “queridinhos” da coleção da dona do Boticário Oriental.

Assim que rapaz magricelo deslizou mais alguns objetos para dentro dos bolsos, sentiu as garras miúdas porém afiadíssimas do gato acertarem-lhe a coxa. Conteve o grito, mais preocupado em manter consigo os prêmios surrupiados. Mal tentou sair na direção da porta e levou uma mordida violenta no calcanhar.

O grito foi ouvido por Margarida, e um dos fracos espatifou-se no chão de cimento, espalhando um odor forte de lavanda. Lucinho, um dos empregados da farmácia, dominou com facilidade o ladrão, retomando os outros frascos, e expulsando o menino com um leve safanão. Um PM que passava na calçada chegou para entender a confusão que começava a se formar e Margarida começou a explicar o que acontecera, com uma tranqüilidade fora do comum. A serenidade daquela moça era conhecida por todo o bairro, nada parecia jamais surpreendê-la ou tirá-la do equilíbrio. Costumavam dizer que ela parecia resplandecer com a irresistível tranqüilidade que parecia preencher sua alma.

Enquanto Margarida explicava o acontecido para o policial, seu telefone celular tocou, num som tão baixo que somente sua dona percebeu.

Ela atendeu e limitou-se a ouvir o que era dito.

Desligou o telefone.

Seu semblante estava alterado.

Chamou seus três empregados, Lucinho, Kléber e Marília, e deixou-lhes encarregados de resolver o problema. Dirigiu-se para os fundos da loja, sempre seguida de perto pelos três gatos que deixava circular pela farmácia, e após uns dez minutos de sumiço, reapareceu de roupa trocada e com ar apressado.

Disse que um irmão havia sofrido um acidente e que necessitava de auxílio.

Ninguém seria capaz de adivinhar o real motivo de sua partida.

A conversa telefônica não era um pedido por ajuda

Era uma convocação.

A partir daquele momento, Margarida Acácio das Neves deixava de existir para tornar-se Margarida de Antioquia, Cavaleira da Cruz Resplandecente.

Ela entrou em seu carro velho e partiu imediatamente. Não precisava de nada além do que carregava consigo. Enquanto dirigia para o destino indicado pelo telefonema, ciente da missão que estava fadada a cumprir, pronunciava uma oração quase silenciosa intermitente.

As pedrinhas azuis que furavam suas orelhas como pequenos brincos começaram a emitir um brilho cada vez mais intenso.

Ela saltou do carro, e correu por dentro de uma viela deserta. Um muro de tijolos separava aquele lugar de uma encosta coberta de mato. No alto do morro, uma casa de três andares equilibrava-se na borda de uma pedreira íngreme. Margarida de Antioquia sabia muito bem como chegar até lá.

Certificou-se que ninguém estava por perto, e esfregou a orelha com força, os brincos começaram a soltar faíscas azuladas, e à medida que a luz ficava mais intensa, ela ia puxando os pequenos cristais um a um. Recolhendo-os na palma da mão, ela pronunciou uma palavra solene em algum idioma estranho, e sentiu as gemas fundindo-se em meio ao clarão em um só objeto, uma magnífica gema de cristal azul-claro.

Segurando-a com força na mão, Margarida agachou-se para observar um grupo de ratazanas que passavam correndo por dentro de uma poça de lama. No alto, uma pequena garça voou emitindo um grito triste. Os dons inumanos conferidos pela gema misteriosa aos membros da Ordem da Cruz Resplandecente transformavam sutis sinais e ruídos em verdadeiros mananciais de informação. A Cavaleira fechou os olhos, concentrando-se, e repassou mentalmente seu plano de ação.

A guerreira podia agora interpretar melhor o que a ave tinha visto, e a partir das mensagens olfativas compartilhadas com as ratazanas, podia traçar um quadro do terreno desconhecido que se escondia por trás da parede de tijolos.

A gema brilhou, emitindo um clarão azulado, fazendo os olhos da mulher brilharem em sintonia. Ela ergueu-se do chão sem produzir som algum, levitando de maneira sobrenatural.

Uma forma humana agora subia a encosta do morro em alta velocidade, flutuando como um pássaro, uma dádiva de todos os cavaleiros detentores da Gema Azul-Clara da Águia Celeste.

A casa ficava cada vez mais próxima, e ela podia compreender que aquela era uma mansão luxuosa, e que com certeza escondia inimigos perigosos. Nenhum vigia ou segurança era visível, e nenhuma luz estava acesa na residência. Para um espectador comum, a mansão parecia deserta.

Mas aquela mulher não era uma espectadora comum, e sabia como pouco ler os sinais preciosos que os animais, o vento e a terra carregam. Seus sentidos estavam mais aguçados, e ela podia sentir que energias arcanas estavam em ação lá dentro.

Margarida preferiu voar diretamente para o último andar, pousando numa varanda estreita que decorava a sacada. Uma piscina pequena, cavada na própria laje, estava coberta de musgo, e o chão era escorregadio. O cheiro de bolor empestava a atmosfera noturna. Assim que ela tocou o chão, um cachorro começou a latir. Era um cocker spaniel atarracado, de pêlos dourados, e aspecto inofensivo.

A mulher fez com que o brilho de sua jóia diminuísse, e tentou um contato empático com o cão. Procurou por mensagens sensoriais que lhe permitissem entender melhor quem estava lá dentro. Não conseguiu nada.

Sentiu apenas um vazio gélido.

Aquele cachorro não era inofensivo.

Tampouco podia ser chamado de “cão”.

O animal soltou um rugido rouco e profundo, como se um trovão ecoasse por dentro de suas entranhas. Uma brisa gelada circulou pela varanda, fazendo com que o musgo na piscina mudasse levemente de coloração. Com um espasmo muscular, ele fez com que sua carne inchasse. Grandes tufos negros de pêlo despontaram de seu corpo, tão grossos que mais pareciam espinhos. Uma baba fétida escorria de sua boca, enquanto a metamorfose completava-se. Em poucos segundos o Damnatus, um demônio canino do Inferno, estava barrando a passagem de Margarida de Antioquia, a enviada da Ordem da Cruz Resplandecente.

As mandíbulas do bicho, enormemente distorcidas pela transformação exibiram ferozes presas que buscaram com avidez a coxa carnuda da Resplandecente. A jóia de cristal brilhou mais uma vez, jorrando um feixe luminoso que ao apagar-se tornou-se sólido.

O simulacro de cão não foi capaz de deter seus movimentos com a velocidade necessária, e antes que pudesse emitir mais um rugido, uma espada de metal azulado estava cravada em sua garganta, com a ponta atravessada em seu crânio.

Margarida sorriu, e com um rápido movimento, ergueu sua espada, partindo a cabeçorra da besta em duas metades. Com a arma ainda em punho, deu um salto para dentro do salão que ocupava o último andar da casa. Um grupo de homens esperava por ela.

Eles estavam em maior número. Riram com deboche, confiantes de sua superioridade. Um deles tinha pupilas vermelhas que pareciam queimar em chamas. Um outro, um ancião de cabelos compridos, mostrou os dentes amarelados e gritou algo numa língua morta. Margarida percebeu que enormes vermes esverdeados enrodilhavam-se na cabeleira do velho. As paredes do salão estavam cobertas de pinturas abstratas, que pareciam ganhar vida. Uma substância viscosa e escura escorreu de um dos quadros descendo pela parede. Os pingos que caíam no chão davam origem a tentáculos. Pequenas criaturas inumanas entraram rastejando pelo chão de mármore.

A silhueta heróica da morena erguendo uma espada azul atraiu a atenção daquela dantesca corja. Eles cercaram lentamente a sua inimiga, confiantes em seu poder.

Ela estava sozinha. Eles eram muitos.

Ela brandiu sua espada e entoou um cântico.

Um homem de cabelos loiros e olhos ardentes criou chamas com a ponta dos dedos ossudos. No fundo do recinto, a Resplandecente podia notar a presença de um enorme livro de capa branca com vários séculos de idade. Duas figuras sem traços definidos tomavam conta da Cândida Bíblia de Salomé.

Foi para isso que Ordem mandara Margarida de Antioquia vir até este lugar blasfemos. Ela devia resgatar o tomo sagrado, ou morrer tentando.

Eles chegaram mais perto, bloqueando a passagem da guerreira.

Eles eram muitos. Ela estava sozinha.

Margarida segurou sua espada com força.

Havia muitos inimigos.

Mas não o bastante para detê-la.

Ela canta mais uma vez, com o semblante sereno, como sempre.

A espada baila no ar, deixando um rastro de luz azul-celeste.

O primeiro inimigo cai a seus pés, sem um dos braços.

Agora só faltam mais alguns.

RESPLANDECENTE SERENIDADE foi escrito por Simões Lopes

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