sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Rebelião 75: Caridade


"Quando Ismália enlouqueceu

Pôs-se na torre a sonhar...

Viu uma lua no céu.

Viu outra lua no mar." (Alphonsus de Guimaraens)

— Eu ainda não posso acreditar que isso aconteceu com ela…

Observo o pêndulo nas mãos de Clow — um penduricalho de vidro, como um cristal, preso em um cordão de prata — movimentar-se suavemente a cada soluço contido. Seu apartamento está uma grande bagunça, mas diferente da desorganização habitual. Com ele, o caos costumava lembrar simplesmente os turbilhões dinâmicos da vida: repentinos, vertiginosos, mas sempre interessantes. Hoje, todo ele tem uma aparência lúgubre, triste (os livros de Ismália estão espalhados pelo chão, porque Clow os deixou cair ao tentar empacotá-los. Vejo Oração aos moços perto de meu pé direito). Acabamos de voltar da missa de um mês de Ismália, sua amante de barro. Clow, como todos os Acólitos, sofre de uma terrível maldição: um elo inquebrável com os mortais. Sua última companheira sofria de psicose maníaco-depressiva, e suicidou-se jogando-se ao mar durante a ausência de meu amigo, quando tivemos aquele probleminha com a R.A.M. Ele ficou arrasado. Toda a sua exuberante alegria parece ter murchado, e uma melancolia e letargia imensas parecem ter tomado seu lugar. Não gosto dessa mudança. Não gosto de sua tristeza.

— Sabe, às vezes eu usava meus poderes para influenciar seu humor. Na hora, eu me sentia um verme por manipulá-la assim, mas quando a via feliz… puxa, era tão bom! Você consegue me entender?

Não, não consigo. Viver entre esses bonecos perecíveis já é extremamente desagradável, imagino conviver com eles. Clow olha para mim esperando uma resposta (sempre gostei disso nele — nenhuma de suas perguntas era retórica, seu objetivo era sempre o de se comunicar).

— Sim, querido, eu consigo.

Ele me devolve um sorriso triste e volta a olhar para o pêndulo.

— Não, não entende. E não é justo que eu pergunte isso a você. Sei como se sente em relação a eles…

— Por favor, Clow, não me entenda mal. Sei que tudo que fez foi para fazê-la sentir-se melhor, e é admirável seu senso de compaixão…

— Não, Gilda, você não entendeu mesmo. Nunca fiz nada a Ismália por compaixão. Eu a amava. Queria vê-la feliz porque a amava e me preocupava com ela. Não posso cobrar de você um entendimento disso porque sei que você é incapaz de amá-los — quando muito, pode tratá-los com condescendência.

— Você é que está sendo injusto comigo agora! Você…

Mas ele faz algo que me surpreende. Ele começa a chorar, baixinho, como uma criança magoada. Eu fico por uns momentos sem saber o que fazer, e ele desliza da cama, onde estava sentado, e fica de joelhos na minha frente, sua cabeça pouco acima de minha cintura. Quase naturalmente, eu o abraço e sinto o calor de suas lágrimas em meu ventre nu.

— Ah, dói tanto… por mais que eu tente controlar... ou esquecer… é uma dor… não, um vazio, que está em toda parte… tudo agora é um vazio dela…

Minha vontade real é estapear seu rosto e trazê-lo para a realidade. Existem Evas como ela em toda parte, e todas irão voltar ao pó, mais hora, menos hora. Será tão difícil assim para esse tolo entender isso? Mas quando olho para ele, é impossível não me comover. Ele é um tolo, um amante de mortais, mas eu o amo. E não posso deixá-lo sofrendo.

Ergo Clow e o levo de volta para a cama. Ele contém um pouco de seu choro e eu caminho pelo quarto, tocando as coisas a esmo. Pego um livro à cabeceira de sua cama (Lira dos Vinte Anos) e deixo o maná fluir...

… eles acabaram de fazer amor, e ela lê Amo a Voz da Tempestade enquanto ele brinca com os dedos de seu pé. Ela ainda tem o gosto salgado de seu suor nos lábios, e a languidez que a toma depois de se amarem a faz sentir-se feliz…

seguro essas reminiscências em minhas mãos como quem captura um vaga-lume. Meus olhos vagam pelo quarto, e eu instintivamente sei o que procuro. Na mesa de cabeceira vejo uma ampulheta, e quando a toco…

as areias escorrem lentamente de um compartimento a outro do dispositivo. Ela está passando por uma crise e Clow está com ela. Essa é a quarta vez que as areias mudam de lugar, mas ele continua calado e abraçado a ela na penumbra do quarto. O ritmo das batidas do coração dele são fortes e constantes como o movimento do tempo, aprisionado neste brinquedo de madeira e vidro…

Não gosto do automatismo de minhas ações, da precisão de meus movimentos procurando as coisas que eram dela, mas continuo. Agora pego uma escova de cabelos, perdida entre vidros de perfume e cremes para maquilagem. Vejo com clareza…

… eles estão em frente do espelho, enquanto ele penteia seus cabelos. Ele os escova bem devagar, ouvindo suas queixas sobre o trabalho novo. Ela se interrompe às vezes para ver se ele está prestando atenção. Como sempre, ele estava…

Ah, é perigoso fazer isso — recolher todas estas impressões tão vivas do amor que ela sentia por ele. Tem um sabor difuso, mistura de urgência, necessidade e gratidão. Há ainda outras coisas, mas em doses tão sutis, e tão fortemente misturadas, que me parecem indistintas. Não imaginava que eles pudessem sentir assim, com tanta intensidade, tão complexamente. Um porta-incensos me diz…

… como eram breves os momentos que ela passava apreciando seu corpo, com mãos e lábios. Não era luxúria, ela só queria sentir, de olhos fechados, cada milímetro da pele de seu amante. Era um hábito estranho, e todos os homens antes dele se impacientavam com isso… mas ele apenas retribuía as carícias, com paciência e afeto…

Os vaga-lumes debatem-se entre meus dedos, tentando escapar. Os prendo firmemente em uma das mãos e caminho até Clow, tirando o pêndulo de seus dedos. Minha intenção era infundir a essência das lembranças dela no cristal, para que ele as pudesse levar por onde fosse. Mas não consegui. O pêndulo cai de minha mão, lentamente, como se pesasse muito, e antes de ouvir o ruído cristalino de mil fragmentos espalhando-se pelo chão, colho um beijo dos lábios úmidos de pranto de Clow.

***

Estamos deitados, os corpos suados e satisfeitos. Sua cabeça repousa sobre meu ventre, e ele está chorando sem fazer ruído. Quando se levanta, olha para mim de forma indecifrável o que me deixa perplexa e arrependida.

— Querido, me perdoe, não era isso que eu tinha em mente...

— Obrigado, Gilda.

Ele se aproxima e beija minha testa de modo fraternal, abraçando-me com tanto carinho, tanta ternura que é impossível não retribuir.

— Você queria me dar uma jóia do coração de Ismália. Mas seu coração não era de pedra; era de feito de um material mais frágil, perecível... e caloroso. Seu amor por mim fez com que penetrasse a essência de algo que despreza, só para me fazer feliz. Obrigado, prima. Obrigado por me dar uma chance de me despedir de meu amor da maneira como éramos em nossos momentos mais felizes.

Ele se levanta e começa a se vestir com um sorriso brincalhão nos lábios, com uma intimidade a um tempo desconcertante e acolhedora. E as últimas brasas de Ismália ainda queimam em meu coração, mas apagam-se lentamente, dando-me tempo para me sentir satisfeita e feliz por ter trazido felicidade a outro alguém.

Obrigada, Ismália. Obrigada por ter me emprestado seu coração e seu amor. Olho Clow se movimentando pelo seu apartamento, com um novo sorriso cheio de nostalgia, e infantilmente começo a imaginar que estou tendo uma epifania: que só conseguimos realmente ser felizes quando doamos felicidade...


CARIDADE foi escrito por Renato Simões

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