sábado, 23 de fevereiro de 2008

Rebelião 77: Ouro dos Tolos


Estéban de Tartessos fora o nome que escolhera quando era bem mais jovem e decidira se unir aos Cavaleiros da Cruz Resplandecente. Seu nome real de batismo não era mais importante, e ele nem gostava usá-lo. Por incontáveis vezes, fora com seu pseudônimo iniciático que ele enfrentara dúzias de inimigos, combatendo (e vencendo) as hordas infernais. Agora não era diferente, pois o homem de cabelos negros e barba crespa, nascido e criado nas praias do sul da Espanha, escalava com certa dificuldade a parede de concreto que ligava dois altos prédios. A madrugada invernal trazia um vento frio e uivante, e Estéban sentia cristais de gelo acumulando-se suas pálpebras.

Nem mesmo tamanho frio e desconforto foram capazes de impedir sua escalada rumo ao topo do paredão de cimento. Com um ágil movimento, rodopiou e venceu o vão de quase três metros entre os dois pisos estreitos de mármore. O parapeito largo circundava uma janela enorme cuja enorme vidraça fumé impedia-no de ver o que acontecia lá dentro. Mesmo sem conseguir enxergar, o cavaleiro sabia muito bem o que estava ocorrendo: uma reunião entre homens muito ricos e poderosos. Homens que aliavam seu grande poder terreno a poderes mais transcendentes, oriundos das esferas celestes e infernais.

Eles eram conhecidos em círculos secretos como Nefilim, seres nascidos do amor proibido entre anjos e humanos. Estéban havia aprendido muito sobre essa espécie maldita com seu grande mestre Gerald de Carthago em um refúgio monástico nos Alpes Suíços, e era a primeira vez que surgia a tão sonhada oportunidade de pôr seus conhecimentos em prática. As relações entre os Cavaleiros da Cruz Resplandecentes e a Ordem Sagrada de São Jorge, apesar de seus objetivos supostamente afins, não eram das melhores, e as diferenças muitas vez contavam mais do que as semelhanças. Os Jórgios de Madri, Barcelona e Sevilha possuíam informações valiosas sobre a presença dos Nefilim nos círculos da alta sociedade de muitas das maiores cidades da Península Ibérica, com tentáculos que incluíam corporações industriais, comércio exterior, e até certas atividades lucrativas nos porões das máfias portuárias. O bom e sensato Gerald, que conseguira através de uma tortuosa negociação obter muitas dessas informações com os próprios guerreiros de São Jorge, não dera muito crédito a boa parte dos relatórios reproduzidos de cópias em CD. Descartara algumas das supostas ligações como exageros ou mistificações. O notório desprezo dos Resplandecentes pelos altos escalões da Ordem de São Jorge poluíra a análise de Gerald com preconceitos — era a conclusão a que chegara Estéban, quando pôde cruzar as informações com mais precisão. O contrabando de ouro através do estreito de Gibraltar, até então uma espécie de feudo de mafiosos galegos, sicilianos e marselheses, havia ganho um novo “rei” nos últimos meses.

Sua real identidade ainda não era conhecida, mas todos diziam tratar-se de um dissimulado empresário mexicano, recém-instalado num condomínio de luxo em Barcelona. De forma incrivelmente eficiente, a gangue liderada por este homem, que alguns chamavam de Quadrilha X, eliminar todos os concorrentes com métodos dos mais variados, alternando assassinatos, subornos, envenenamentos, e até uma certa dose de sorte.

Muitas coincidências aconteceram nos últimos meses: um chefão siciliano fora facilmente capturado após um súbito ataque de loucura; uma gangue que aterrorizava Sevilha acabou após uma guerra interna autofágica; dois grandes empresários que atuavam também nos circuitos ilegais mudaram de endereço, exilando-se na América e até na China; o primeiro escalão inteiro de uma gangue de falsificadores entregaram-se espontaneamente à Polícia, supostamente regenerados.

O próprio Estéban dedicara-se com afinco às investigações, e sabia tanto sobre os bastidores do submundo que não era capaz de dar-se ao luxo de acreditar em coincidências. Se os Nefilim estavam agindo por aqui, com certeza estariam usando de seus poderes sobrenaturais para influenciar — ainda que discretamente — o curso dos acontecimentos.

O Resplandecente olhou para baixo por um breve momento, detendo a respiração. Estava a mais de quarenta metros de altura, e qualquer deslize seria fatal. Alisou o estranho relógio que carregava no pulso, composto por estranhas pedras de cor violeta. Seus pulmões pareciam queimar com o esforço físico, mas isso não o impediu de caminhar pela plataforma de mármore até contornar o primeiro bloco de janelas. Utilizando-se com maestria de uma fileira de calhas para subir mais um andar, posicionando-se bem embaixo da grande marquise que protegia o último andar da torre do edifício comercial conhecido como Antares Center. Puxou a pulseira do relógio, o que desencadeou uma explosão de luz violeta em seu pulso. Aparentemente sem sentir nada, ele ergueu o braço o mais que pôde, mentalizando uma prece e concentrando-se em sua missão. O que antes era uma simples jóia transmutou-se rapidamente numa manopla munida de enormes espigões pontiagudos.

Sentiu o poder do cristal fluir por seu corpo, e calcou com força a janela de vidro negro. As energias místicas da gema violeta vasculharam as salas ocultas em busca de elementos sobrenaturais, transmitindo suas impressões para o próprio Estéban, conectado espiritualmente à sua arma resplandecente. Não havia dúvida que forças arcanas atuavam lá dentro. Pelo menos três entidades circulavam pelo andar às escuras.

Um calafrio percorreu a espinha do guerreiro quando percebeu intuitivamente que sua mente estava sendo monitorada. Uma presença incômoda vasculhava seus pensamentos em busca de respostas, e ele usou o poder da pedra violeta para dispersar o ataque psíquico. Sua presença havia sido detectada, e ele viu-se num caminho sem volta.

Era chegada a hora do combate.

A aura sinistra de seus inimigos podia ser sentida com facilidade, e ele já sabia que eram três e que todos estavam no último andar. O quer que estivessem fazendo, não era uma reunião de negócios, tão pouco uma atividade empresarial corriqueiro. Lançando o corpo para trás, ele deixou-se cair para o pavimento imediatamente abaixo, aterrizar no parapeito com um baque surdo. Tentou abrir a janela, mas sentindo-a travada, viu-se força a usar a manopla para espatifar o vidro e forçar a entrada.

Um salão escuro parecia estender-se por quase todo o andar, e Estéban preferiu correr o risco de atravessá-lo do que ficar numa posição descoberta junto à janela. A luz mística que emanava de sua arma aumentou sua sensibilidade, fazendo com que seus olhos guiassem sua corrida na mais completa escuridão.

Podia sentir que um dos inimigos estava mais próximo, descendo pelo que parecia ser uma escada. Antes que Estéban pudesse planejar sua ação, sentiu-se golpeado por uma força invisível com tanta violência que foi arremessado por cima de uma escrivaninha. O Cavaleiro recompôs-se o mais rápido que pôde, e finalmente identificou o primeiro de seus inimigos, uma elegante mulher de cabelos loiros quase brancos. Seus olhos brilhavam e seu corpo parecia estar envolvido com uma espécie de névoa imaterial. Para a visão treinada do Resplandecente, a névoa parecia salpicar a sala escura com o brilho de miríades de estrelas. Ele sabia que as estranhas asas formadas por esta névoa — que não eram físicas — eram um sinal que comprovava a identificação daquela mulher como um Nefilim.

Um novo ataque telecinético arremessou uma nuvem de objetos na direção de Estéban. Canetas, cacos de vidro, copos, pedaços de borracha e madeira, tudo parecia engolfado num turbilhão de vento que fustigava o portador da manopla. Mais alerta desta vez, o Cavaleiro conseguiu anular parte do impacto dos objetos, e com um novo influxo de energia de sua arma, reverter o ataque, mandando a saraivada de lixo na direção da moça. Surpreendida pelo contra-ataque, ela não conseguiu evitar ser atingida por um copo na testa, e caiu gritando.

O brilho da manopla aumentou, iluminando o recinto com um matiz violáceo. Mais alguém estava presente, mas não estava invisível aos olhos humanos. A luz resplandecente que emanava em espirais revelou a silhueta de um homem grande voando como um bólido. Estéban saiu do alcance de seu adversário e golpeou seu espectro com sua manopla. Um indivíduo muito alto e forte, com feições orientais, caiu no piso metálico de forma desajeitada. Vestia um impecável terno de cor mogno, e estava muito irritado. Usando as sombras como refúgio, ele mais uma vez tentou atacar, desmaterializando-se e movendo-se como espectro protegido pelas trevas. A manobra mais uma vez não surtiu efeito, pois a divina luz da Gema Violeta de Amit sempre protegia o Cavaleiro Estéban de Tartessos.

Agora que os dois primeiros Nefilim haviam sido derrubados, restava o terceiro, o qual ainda não havia se revelado. Sinais muito fracos vinham do andar de baixo, e o Resplandecente pôs-se em estado de alerta.

Uma silhueta masculina materializou-se lentamente bem à sua frente. Era alto, vestia um elegante terno listrado, e as raízes escuras mostravam que seu cabelo louro-escuro era artificial. A sua voz era um tanto quanto fina e ríspida, pronunciava as palavras com um sotaque que o Cavaleiro reconheceu como sendo do México. A forma como pronunciava os cês e zês indicava ser alguém nascido na América Latina. Um pequeno cavanhaque decorava o queixo, e seus olhos enormes emitiam uma espécie de halo ameaçador.

— Não gostamos de intrusos aqui, soldado raso. Volte para o quartel de onde veio... — disse em tom insolente, o estrangeiro.

Estéban cerrou os punhos, apontando a manopla em tom de ameaça: — Depois do que vi aqui, não posso retornar sem ter cumprido minha missão — respondeu, sem perder o controle.

— No andar de cima, temos um carregamento de ouro. Pegue quantas barras quiser e suma daqui — o misterioso mexicano apelou para o suborno. Não parecia disposto a lutar.

O silêncio do seguidor da Cruz Resplandecente parecia mostrar a repulsa dele pela proposta.

— Ora, monge. Reconsidere. Pense em quantos mendigos poderá ajudar com a venda do ouro. Em quantos quilos de comida poderá comprar. Onde está a vontade de ajudar o próximo? Não se fazem mais clérigos como antigamente...

— Poupe-me do seu deboche! — protestou o guerreiro, enquanto ganhava tempo para planejar a melhor estratégia. Sabia que o Nefilim não estava ali, sua arma podia detectar a aura espiritual e sabia que tratava-se apenas de uma ilusão projetada.

Os dois companheiros do Nefilim estavam imóveis, recuperando-se dos ferimentos da batalha, e suas feições relaxadas mostravam que estavam à espera da próxima ação do terceiro amigo, que demonstrava uma certa aura de liderança.

Ele sentiu um quase imperceptível farfalhar, como se um turbilhão de vento entrasse pela sala. O fluxo de energia etérea fez sua manopla agir quase por vontade própria golpeando o ar, como se uma ameaça invisível pairasse por ali. A materialização do mexicano foi tão rápida que mesmo detectando o golpe, Estéban não pôde fazer nada para impedi-lo. O híbrido surgiu do nada, cuspindo um filete de chamas, e desaparecendo novamente.

Estéban caiu no chão com as roupas em chamas. Mesmo utilizando os poderes da manopla, ele não conseguiu anular inteiramente as queimaduras. Se fosse fogo comum, ele com certeza poderia apagá-lo de forma quase imediata, mas aquilo com certeza eram chamas infernais produzidas pelo rebento de um anjo caído.

Com os braços em carne viva, o Resplandecente recriminou-se de sua própria imprudência e tentou em vão golpear seu inimigo, mas este mais uma vez sumira no ar. Ele não podia ficar ali, indefeso, era preciso fazer algo. A manopla irradiou mais uma vez um casulo de luz violeta, transmutando-se numa espada. Sua regeneração era lenta e dolorosa, e por diversos momentos, ele pensou que iria perder a consciência. A imagem falsa do criminoso mais uma vez apareceu diante dos seus olhos.

— Eu odeio lutar, soldado. Para quê a força, se eu tenho tantos outros recursos? Eu não preciso combatê-lo, deixo que outros façam isso por mim.

O Cavaleiro da Cruz Resplandecente golpeou o fantasma com a espada, numa explosão de raiva. Sua frustração aumentava cada vez mais, aliada à vergonha de ser derrotado de forma tão fácil. Preparou-se para combater os Nefilim, mas não via mais nenhum sinal deles. Sozinho e frustrado, ele foi gradualmente perdendo o controle, e suas ações tornaram-se mais impulsivas. Subiu com dificuldade os degraus que levavam ao andar superior, e deparou-se com um depósito de barras de ouro, o que confirmava a bravata do Nefilim. As atividades criminosas estavam rendendo lucros altos, e aquele prédio, sem dúvida, era uma das bases de operação dos mafiosos semi-humanos. O Cavaleiro riscou uma das barras com sua espada, e fez uma rápida análise do material: tudo era falso. Estariam sendo usados em algum golpe? Como iriam enganar as autoridades?

Um alarme muito forte começou a soar pela câmara, quase estourando seus tímpanos. Estéban golpeou com força, cortando a barra de ouro espúrio como se fosse de manteiga. Tomado de uma ira cada vez mais irracional, o cavaleiro debilitado demorou a perceber que um grupo de agentes de segurança estava se aproximando pelos elevadores. O prédio não estava vazio, mas a raiva não o fez perceber isso. Os primeiros seguranças surpreenderam-se com a visão de um homem segurando uma espada — algo extremamente inusitado —, e deram-lhe tempo suficiente para correr até a janela.

“Só preciso escapar pelo mesmo paredão por onde subi”, “Fácil”, “Fugir é preciso”, repetia para si mesmo, tão descontrolado que jamais viria a perceber que estava sendo vítima do manifesto conhecido como Bestialidade. Javier Passaláqua, o criminoso misterioso mexicano, era um Nefilim da linhagem dos Precursores, e incutiu na mente do debilitado cavaleiro a Bestialidade de forma tão sutil, que o pobre Estéban não conseguirá descobrir o logro a tempo. Vítima da perda da razão, ele tenta apenas fugir, como um animal acuado. Ele prepara-se para o salto para a liberdade, convicto de sua agilidade. Os seguranças não conseguem acreditar na cena que presenciam, e ficam estáticos.

“Só um andar”, pensa Estéban, antes de flexionar os músculos. A cicatrização das queimaduras prossegue. Ele salta. Com toda a força, detêm a queda fatal firmando os dedos na borda marquise do 13º. andar. Quando ele percebe a presença da mesma mulher de cabelos claros olhando para ele com ar triunfal, é tarde demais. Um poderoso golpe psicocinético arranca-o do parapeito, arremessando-o de uma altura de mais de trinta metros. A mulher chama-se Esther Navarro, e é uma Precursora como seus colegas.

Em sua última queda, ela solta um rosnado bestial, e seus pensamentos ficam reduzidos a uma cacofonia confusa de emoções espontâneas. Medo. Frio. Dor. Ele pensa em sua arma, a Gema Violeta de Amit. Ela poderia ter removido a presença parasita que turvava sua mente, mas já é tarde demais.

O impacto na chão da viela escura é tão violento que sua bacia é esmagada, sua cabeça explode numa poça de sangue e miolos esparramados.

Um vulto materializa-se junto ao corpo esfacelado. É Javier, abrindo um largo sorriso de triunfo. A espada brilhante que antes refulgia como uma arma dos deuses, agora transmutando-se rapidamente em sal. Debaixo do túmulo de cinzas salinas, o Nefilim remexeu nos dedos retorcidos do cadáver para arrancar o que restara da gema violeta, agora reduzida um artefato petrificado de sal-gema. Com a morte de seu protetor e protegido, o cristal não passa de um mineral inútil.

— Ela agora não serve para mais nada? — pergunta o robusto oriental de nome Timmy Santoleón, filipino e sócio de longa data dos empreendimentos de Passaláqua.

— É apenas uma pedra de sal — responde Javier de forma seca. — Como talismã não vale mais nada, mas eu não iria abrir mão de um troféu tão valioso. Quem sabe eu não descubra o forma de reativá-lo?

— Vai procurar Alfonsus ou Hannibaal? Talvez eles saibam como reverter a petrificação — o oriental demonstrou certa curiosidade.

— Depois eu penso nisso, é hora de prepararmos a “limpeza” o prédio. A morte do Cavaleiro será vista apenas como a morte acidental de um ladrão. Mas outros Cavaleiros mais tarde acabarão descobrindo que um deles morreu aqui. Não quero a infantaria celeste metendo-se na operação “Ouro dos Tolos”. Ligue para Esther, e peça para transferirmos o carregamento de ouro para outra sede.

— Canárias? — sugeriu Timmy, enquanto ligava para sua colega, que ainda devia estar no prédio.

— Pensei em Bahamas ou Aruba. Quanto mais distante daqui, melhor.

Os dois riram e se afastaram, deixando para trás o cadáver de Estéban de Tartessos. Amanhã não haveria nem um barra de ouro mais no prédio, e Javier estaria refastelado em alguma praia ensolarada, hospedado em algum hotel cinco estrelas, em algum remoto paraíso fiscal.

Enquanto isso, os tolos continuariam nascendo e morrendo, indo e vindo, e sustentando seu império oculto.

OURO DOS TOLOS foi escrito por Simões Lopes

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