sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Rebelião 73: Tabula Lupercalis

Há muito tempo que Roma não tinha um inverno tão rigoroso, e aquela noite era a mais fria do ano. Leopoldo Carpone e Annabella Saverio ainda estavam acordados, debruçados sobre a enorme escrivaninha de madeira antiga, com uma série de pergaminhos antigos em frangalhos cuidadosamente dispostos sob uma proteção transparente. Os outros arqueólogos, Elia e Gioconda, já tinham sido vencidos pelo sono e estavam em seus quartos dormindo.

Desde o início nas escavações na catacumba, Annabella jamais se sentira tão perto de decifrar os documentos como agora. O dia fora marcado por uma sucessão de descobertas, e o que parecia ser um indecifrável quebra-cabeças agora começava a fazer sentido. Leopoldo conferia alguns caracteres alfabéticos num velho glossário, enquanto Annabella repetia suas mais novas conclusões, com um orgulho indisfarçá-vel.

— Estávamos seguindo o caminho errado. Ontem, eu finalmente consegui desvendar aquelas incongruências do nosso modelo inicial. Não estamos lidando com um só alfabeto, mas com vários. Baseando-me em certos detalhes de estilo e outras sutilezas, consegui decompor os textos cuneiformes em duas diferentes séries. A primeira realmente está em sumério, como desconfiávamos, e a segunda num alfabeto similar, mas que seguramente não é o mesmo.

— Uma derivação mais recente do cuneiforme sumério? — perguntou Leopoldo.

— Não. Pelo meu estudo, acredito que seja uma forma mais arcaica ainda — completou a frase com um sorriso.

— Impossível! Um alfabeto mais antigo? Isto seria das maiores descobertas da Arqueologia atual!

— Pois é, acho que estamos nesse caminho...

— Mas os sumérios não usavam pergaminhos, somente tabuletas de argila. Além disso, como isso foi parar numa catacumba romana?

— Eu sei que estamos diante de enormes paradoxos. Mas eu e Elia descobrimos hoje mais pergaminhos numa câmara secreta na ala sul. E com eles achamos algumas tabuletas em pedaços. Os pedaços conferem com o texto manuscrito.

— Você e Elia continuaram a escavação hoje? Por que não me avisaram de nada? — protestou Leopoldo, coçando os fartos bigodes castanhos.

— Você tinha viajado até Florença, pensamos em ligar para você, mas eu quis fazer uma “surpresa”... — os olhos castanhos da moça pareciam brilhar.

Leopoldo deu um beijo demorado na companheira, com quem mantinha um namoro há duas semanas, e viu que esta estava segurando um dos fragmentos na mão. Annabella chegou a esboçar um protesto quando Leopoldo arrancou apressadamente de suas mãos a pequena lasca de argila, mas deixou que ele visse por si mesmo.

— Cuidado, Leo, a placa é frágil.

Annabella podia compreender a empolgação de seu colega. Carpone era o mais jovem da equipe de arqueólogos, e também aquele que chegara há menos tempo no instituto.

— As descobertas de Elia revelaram ser diversos conjuntos de fragmentos, nos quais identifiquei preliminarmente textos em sumério, em etrusco e latim arcaico, além de três línguas desconhecidas. Achamos também mais pergaminhos, a maioria em latim. Leo? Está me escutando?

Leo estava de costas, examinando uma das placas de argila. Lançou um olhar envergonhado para sua namorada, e pediu que ela continuasse.

A cientista passou a mãos pelos cabelos negros e muito curtos, e esfregou o pingente brilhante que sempre usava.

— Minha teoria é que trata-se de uma espécie de Pedra de Rosetta, temos provavelmente o mesmo grupo de textos, traduzidos em diversas línguas. Parece-me que foram sendo traduzidos e copiados com o passar dos séculos. Graças aos conhecimentos de Gioconda em línguas itálicas, já conseguimos decifrar um dos fragmentos de pergaminho.

A afirmação da mulher fez com que seu companheiro deixasse a placa na mesa, e se aproximasse com o maior interesse.

— E o que dizem estes textos? Manuscritos proto-cristãos das catacumbas? Leopoldo apertou a mão de sua amante com força.

— Pode ser. Mas parecem ter sido de alguma seita gnóstica ou de algum culto judaico aberrante, talvez até adeptos de alguma religião híbrida. Gioconda compilou o que parece alguma espécie de narrativa mítica sobre criaturas lendárias — a moça puxou um caderno de capa alaranjada de dentro de uma gaveta, e começou a ler as anotações de sua colega. Leopoldo ouvia tudo em silêncio.

— O Rei... está pouco legível...parece ser Baiarsa, ou Baiarsag, de Gomorra, teve um reinado longo e era muito temido pelo seu poder. Graças às demônias que adorava, sacrificou o próprio filho, e cercou-se de uma legião invencível de homens-fera.

— Bersa — era Elia que estava de volta, não tinha conseguido dormir, e decidiu voltar aos estudos. — Bersa é o rei de Gomorra citado na Bíblia, cuja forma hebraica mais correta seria Birsha’, com um “ayin” no final. Elia Ubaldo Frizzo era gordo e usava óculos, e era muito baixo. Sua chegada não agradou muito a Leopoldo, que ficou mais sério.

— Sim, faz sentido — concordou prontamente a arqueóloga—, mas deixe-me continuar: Os anjos de Deus foram enviados para punir as cidades malditas de Sodoma e Gomorra. Seus nomes eram Surial, o Sherafim do Sol, Ragüel e Azrael. A cidade foi inteiramente destruída e seus habitantes mortos. A legião de lobisomens tentou refugiar-se no Templo de Hekath e Gomory, cujas colossais estátuas de prata foram derretidas pelo calor intenso do fogo celeste. Sete crianças foram as únicas sobreviventes, todas com a semente infernal dos demônios germinando em suas almas. Elas fugiram, espalhando-se pelas regiões mais frias do norte. Devido ao terror pelo qual passaram em sua fuga, passaram a desprezar o Sol, a Morte e a Prata.

Elia segurava agora uma caneca de vinho. Ouvia tudo com atenção, embora já soubesse de quase tudo, mas Annabella havia conseguido descobrir mais detalhes.

— Outro fragmento diz que os lobisomens quiseram reerguer Gomorra, e que com dois irmãos gêmeos, guiados por Akka, uma das primeiras mulheres-lobisomens, construíram uma grande cidade. Um irmão acabou matando o outro, e o sobrevivente depois desapareceu. Os planos de criar a Nova Gomorra falharam. A história não é muito clara. Há muitas lacunas. Fala de um lobisomem que migrou para o extremo norte da Europa, assumindo o nome de Bersarachis

— Um nome derivado de Bersa, sem dúvida — complementou Elia Frizzo.

— Gioconda acha que é a origem do nome “Berserkr”, que os vikings davam a homens possuídos por uma força animal devastadora — explicou Annabella.

Leopoldo ergueu-se, com ar de cansado. — Puxa, tantas descobertas na minha ausência! Estou exausto, vejo que não precisam mais de mim, vou dormir.

— É, vejo que Annabella progrediu muito hoje, nos vemos amanhã. Também estou indo dormir — era Elia que falava agora, meio “contaminado” pela preguiça de seu amigo.

Annabella continuou analisando as anotações de Gioconda, e resolveu trazer mais alguns pergaminhos para o escritório. Não consegui pensar em dormir, tinha que ir até o fim.

Os ponteiros do relógios já indicavam as 3:34 da manhã quando Leopoldo retornou ao escritório.

— Acordado de novo? — perguntou a moça.

— Você não vem dormir? Estou sentindo sua falta — disse Leopoldo, lançando um olhar libidinoso para ela. Estava sem camisa, e havia uma enorme cicatriz em seu braço esquerdo.

— Você se machucou, querido? — ela perguntou, preocupada.

— Nada de mais, foram os arames perto da janela... só isso...o que você está escrevendo aí?

— Novidades! Novidades! Annabella soltou um belo sorriso, mas parecia sentir um pingo de sono. — Os textos não lhe soaram familiares?

— Não...eu...

— Ora, Leo, francamente! Não sei como não percebemos isto antes! Dois irmãos gêmeos, guiados por uma mulher-loba, construindo uma cidade... é a lenda da fundação de Roma! Rômulo e Remo, cuja ama tinha o nome de Acca Laurentia!

— Temas míticos recorrentes, querida. Isto se repete... — não chegou a completar a frase.

— E tem mais, veja o que eu descobri, pesquisando na Internet, bem agora: Gomorra em hebraico se escreve ‘Amora...

— Sim...e?

— Se escrevermos ‘AMORA ao contrário temos AROMA’...ROMA! Roma foi a Nova Gomorra para esta seita! E o nome latim dos lobisomens era versipellis, significa “pele trocada”, mas não poderia relacionar-se com um radical mais antigo vers-, bers-, ligado a Bersa? Em proto-itálico...

— Xiii.... — Leopoldo cobriu os lábios de Annabella com o dedo. — Hora de descansar este cerebrozinho maravilhoso. Ele começou a beijá-la, e a desabotoar sua blusa.

— Aqui...os outros...

“Todo mundo já está na cama”, cochichou Leopoldo, “é hora de nos deitarmos também”. As mãos dele já avançavam no sutiã, puxando com tanta força, que arrancou os fechos.

— Uau! Gostei disso! — falou ela ao ouvido do amante.

— Querida, pode tirar o pingente? As pontas são meio afiadas, pode machucar. Você não vai precisar dele agora — ele agora apertava as nádegas dela com força.

— Claro... — ela tirou o colar de prata e jogou para debaixo da mesinha.

Ela a jogou no chão com muita violência. Sua mão cobriu sua boca, apertando-a e comprimindo sua cabeça.

Sua voz tornou-se um rugido. Dentes amarelados e enormes brotaram da boca, enquanto uma juba de pêlos castanhos e ásperos envolvia seu corpo, que agora ganhava mais músculos.

Uma língua comprida e pegajosa lambeu o rosto e os seios pequenos de Annabella. — Você não sabe como foi difícil me conter para não matá-la antes!

— Vocês descobriram as Tábuas Lupercais, algo muito valioso para o meu povo. Não chore, seus amigos já estão mortos. Só falta você agora, minha deliciosa “ovelhinha”.

Annabella não arriscou a menor reação. Falou lentamente:

— Cuidado com a ovelha.

O monstro sentiu um golpe poderoso rasgando suas entranhas. Uma espada flamejante surgida do nada partiu o crânio da aberração ao meio. Enquanto ele sentia seu corpo ardendo, podia ver salamandras saltitando por entre as labaredas. Um segundo golpe da espada cortou suas pernas.

Annabella ergueu-se, e com um golpe preciso deu cabo da vida daquela monstruosidade.

Ela já havia percebido quem ele era, graças à ajuda de alguns amigos, e enquanto ele o tempo todo pensava estar enganando-a, na verdade era ele que estava sendo enganado.

Ela juntou todos os pergaminhos e tabletes numa caixa, pegou sua bagagem e fugiu pela manhã. Era hora de procurar pelo seu amigo Acólito e decifrar o restante.

Leopoldo Carpone não havia sido o primeiro, e provavelmente não seria o último versipellis a ser morto pela Bastarda Annabella.

A Tabula Lupercalis estava em boas mãos agora.

TABULA LUPERCALIS foi escrito por Simões Lopes

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