quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Rebelião 82: As Amigas de Tony


A fumaça densa preenchia o ambiente, dando-lhe um aspecto quase onírico. Fumantes compulsivos e alcóolatras inveterados acotovelavam-se junto à estreita bancada do bar, onde um grupo de belas atendentes preparava uma vasta gama de coquetéis. Dois bebedores mais exaltados ensaiavam um início de briga, interrompida pela chegada de um parrudo segurança.

Aparentemente alheio à trilha sonora barulhenta e à algazarra perene de vozes alteradas pelo alto teor etílico, um homem de aparência cansada ocupava uma mesinha quase escondida atrás de uma das colunas que sustentavam o teto espelhado. Os olhos injetados de sangue pareciam indicar uma irritação provocada pela atmosfera poluída do recinto, mas o pacato personagem continuava bebericando lentamente da sua caneca. Os dedos da mão direita pareciam tamborilar uma melodia na mesa, e os pés estavam descalços, escondidos no aconchego das sombras.

Duas belas mulheres de olhos verdes e corpo bronzeado, gêmeas idênticas, aproximaram-se sorrindo. As silhuetas esculturais eram realçadas pelos vestidos colantes e brilhantes, e seus olhares irradiavam uma aura sensual.

— Tony, por que você não veio semana passada? — pergunta a primeira irmã, de vestido verde-prateado, com um tom de leve reprimenda.

— Luciane, sou um homem ocupado, infelizmente não pude ir, mas prometo que nada me impedirá de estar lá semana que vem.

A resposta pareceu causar um ardente entusiasmo na dupla de moças, que ficaram com as bochechas coradas. A sensual garota de vestido prata aproximou-se do homem, beijando-lhe a boca de supetão.

— Eu sou a Cristiane, Tony — corrigiu-o, num breve sussurro.

— Desculpe, Cris, eu sempre confundo vocês duas... — disse ele, abrindo um largo sorriso e apontando para a outra gêmea, que vestia um top verde-escuro e uma mini-saia curtíssima.

— O nome dela é Juliane — corrigiu-o mais uma vez, tentando disfarçar com mais um beijo, como se não quisesse ofender o “amigo”.

— Oh, que distração a minha.... — desculpou-se ele, e tomou mais um gole de sua caneca. Suas mãos pareciam trêmulas. A vista, cada vez mais inchada, indicava uma grave irritação ocular, e uma rede de finíssima veias azuladas começava a despontar em sua testa.

A gêmea de vestido mais longo, Cristiane, sentou-se no colo de Tony, sem demonstrar a menor cerimônia, e puxou a caneca para si, sorvendo com rapidez. O gosto não pareceu agradá-la.

—Eca! O que é isso?! — A cara de nojo parecia enfatizar ainda mais a reclamação.

— Leite coalhado, querida. Eu tentei avisar, mas você não me deu tempo — desculpou-se Tony, num tom quase paternal

Com tanto barulho, Tony sentiu que a outra gêmea não conseguia acompanhar a conversa, e chamou-a para junto de si:

— Por que tão longe, Lu? — disse ele, dando uma palmadinha no próprio joelho.

— Ju, Tony, Ju-liane — mais uma vez ele ouviu Cristiane corrigindo-o.

— Ah, minha memória está me traindo. Coisas da idade... — completou com uma gargalhada abafada.

— Você não é nada velho, gatão, deixa de brincadeira — Cristiane deu um beijo estalado na bochecha do homem, que provocou ao insistir que “era muito mais velho do que aparentava”. Juliane não perdeu a oportunidade de aproveitar-se da intimidade, e também deu um beijo no felizardo bon vivant.

— Pra que esperar... — sussurrou ela, enquanto lambia delicadamente a orelha de Tony — ... se estamos aqui agora!

À medida que as gêmeas o acariciavam, os olhos do homem — que não aparentava mais de trinta anos — foram perdendo o inchaço, e as veias em sua testa também sumiam.

— Ah, sempre safada... do jeito que eu gosto. Ele passou a mão — que já não estava mais trêmula — na coxa da outra garota, que pareceu não gostar do elogio à irmã.

— Você gosta mais dela, Tonyzinho? Já esqueceu daquele dia na piscina... — A lembrança lasciva daquela noite de outono pareceu revigorar o homem, tornando até sua voz mais possante:

— Como me esqueceria, Cristina? Eu já cansei de dizer que amo as duas. Sua mão perdeu-se propositalmente no largo decote de Cristiane, que tão excitada estava, nem se incomodou que ele errasse mais uma vez seu nome.

— Vem com a gente, Tony! — suplicaram as duas, tentando tirá-lo da cadeira.

O celular dele tocou exatamente neste momento.

— Um momentinho, gatinhas, é só que eu peço... — seus olhos límpidos agora estavam azuis, o que chamou a atenção de Juliane:

— Tony, seus olhos não eram negros?

— Depende da luz e do clima, Ju — finalmente ele acertou o nome. — Só um momentinho... e eu serei... todinho de vocês.

Ele tirou do bolso o telefone caríssimo, de última geração, e escutou pacientemente por alguns instantes. Abaixou o tom de voz propositalmente.

— Sim, Vívian, eu sei. Recebi... seus presentes, mas não posso aceitar. Devem ter custado uma fortuna! Eu não posso...

Do outro lado da linha, a tal “Vívian” parecia não ter gostado da resposta.

— Sim...não...não é isso... cinco mil?... isso é caro...não, não foi isso que eu quis dizer... — Tony continuava balbuciante.

As amantes de Tony eram muitas: loiras, negras e morenas; ricas e pobres; lolitas e mulheres de meia-idade. Para um sedutor irresistível como ele, os presentes de Vívian de Lorca eram apenas novos itens em sua coleção de “agrados”. Graças a seus dotes sexuais, ele conseguia manter um padrão de vida altíssimo arregimentando uma lista de amantes satisfeitas nos mais altos escalões da cidade. Vívian, a insuspeita esposa de um juiz, sentia-se obrigada a compensar seus prazeres satisfeitos com presentes caríssimos.

— Seu amor é o mais importante, Vívian... — a aparente recusa dos presentes era só parte de uma estratégia de dissimulação: Tony jamais recusava nenhum presente. Na verdade, eram eles que garantiam o seu sustento.

— Amanhã, você vai subir pelas paredes, Vivi! — O homem sabia direitinho como manter uma ninfomaníaca milionária sob controle.

— Hoje? Sinto muito, não dá... — ele lançou um rápido olhar para a dupla de irmãs, mas elas tinham sumido. Em seu lugar, estava uma mulher morena, baixinha e de longuíssimos cabelos encaracolados, presos num rabo-de-cavalo.

— Por favor, Vivi, não chore... deu uma pausa... Olha, estou numa reunião de negócios, mais tarde eu ligo... outra pausa prolongada... eu nunca mentiria para você — o tom afável era irresistível. — Nos falamos em breve... pensei em coisas incríveis pra fazer com você— ele sentiu que a esposa do juiz caíra na teia, mais uma vez — mais tarde te ligo. Tchau!

Ele tentou mais uma vez olhar ao redor, em busca de sua diversão dupla para aquela noite enfadonha de inverno, mas elas Cris e Ju não estavam mais por perto. Tentou com seu olfato aguçado rastrear o odor forte da essência floral que exalava do corpo das irmãs, mas foi em vão.

A estranha mulher continuava parada bem à sua frente, com o semblante amarrado. Vestindo uma roupa cinzenta e levemente amarrotada, larga demais para delinear seu corpo, emanava uma desagradável ausência de sensualidade.

Mesmo sem interesse, ele jamais recusava a companhia de uma mulher. Após uma mesura quase imperceptível, inclinou-se para segurar a mão de sua nova “amiga”, e beijá-la.

Ela retirou a mão com violência. Pronunciando com forte sotaque sulino, a primeira frase provocou um calafrio nos cabelos de Tony.

— Ladaimes, precisamos conversar — o tom ríspido e antipático. Seus olhos negros e vivazes pareciam evitar os de Tony, que agora pareciam mais esverdeados.

— Não sou eu. Quer um drinque? — disse ele, confiante em livrar-se da incômoda presença.

— Ladaimes, eu sei quem tu és. Sei que és um íncubo, e vim aqui para alertar-te de um perigo.

— Saia daqui, você não faz o meu tipo. Você precisa cuidar mais do seu visual sabe... — tentou passar a mão nos cabelos da moça, mas esta repeliu-o com um vigor exagerado para uma mulher tão pequena.

— Meu nome é Baiarda Bach, ­e sigo uma trilha solitária longe do Céu e do Inferno. Já exorcizei dois íncubos que me ameaçaram, Ladeimas e Lemaedis, em Viena, mas há tempo atrás, em Toledo, salvei a vida de Lideames.

As pupilas dos olhos de Tony agora brilhavam num tom púrpura intenso. Com a fisionomia fechada, num tom ameaçador, foi sintético em sua resposta:

— Se sabe quem sou eu, sabe que posso quebrar seu pescoço antes que pronuncie uma única sílaba.

— Sim, eu sei. Aqui está uma prova de que Lideames é meu aliado!

Ela tirou uma lasca pequena de um dos bolsos da jaqueta amarrotada. O fragmento de unha, chamado nos círculos ocultistas de onghia del’incubo, “unha do íncubo”, era um talismã potente, obtido a partir de um pedaço de unha ofertado por um íncubo, ou lilim, como também eram conhecidas estas criaturas infernais. Esta raça demoníaca não possui unhas em sua forma verdadeira, mas seu dom de criar simulacros materiais de aparência humana gerava unhas falsas, que só podiam manter-se enquanto a criatura estivesse viva.

Tony, ou Ladaimes, seu nome verdadeiro, já estava quase convencido da veracidade da história.

— Por que esta tentativa de aproximação, Senhorita Bach?

— Eu sou uma bruxa, e minha investigação constante dos mistérios universais depende de uma extensa rede de “contatos”.

— E agora quer me incluir nesta “rede”, presumo eu — perguntou, com o desdém explícito no tom debochado.

— Se assim quiseres — disse ela, mas pareceu atrair a simpatia do íncubo.

— “Incluir” ou “prender”? — ele fez questão de não esconder sua desconfiança.

— Uma mulher virá atrás de ti.

— As mulheres sempre fazem isso. Por que temeria?

— Esta mulher virá como caçadora, e não como amante — ela frisou bem a palavra “caçadora”.

— Ah! Nenhuma mulher resiste a meus poderes.

— Nem mesmo uma Arcangelista da Legião d’Arc?

Ladaimes fechou os olhos. Parecia estar consultando alguma memória remota em seu cérebro. Baiarda permaneceu em pé, à espera de uma resposta.

O lilim sabia, em sua longa estadia na Terra, que as seguidoras da seita celestial d’Arc eram temíveis guerreiras, mestras nas artes de combater, de planejar e de forjar as mais letais armas bentas. As mulheres na seita que militavam na linha de frente com combate direto eram conhecidas como Arcangelistas, em virtude de seu patrono, São Miguel Arcanjo. Ladaimes já fora alvo de um ataque das Darcianas em Lisboa, na década de 30. Atribuía sua sobrevivência ao mais puro acaso, pois escapara do ataque raivoso de uma mulher que atendia pelo nome de Jeanne de Reims, munida de uma acha dourada e de uma manopla cinzenta de ferro. Inflamados pela energia celestial, o distinto arsenal chegou a decepar uma das mãos do íncubo fugitivo. Graças à sua elasticidade demoníaca, Ladaimes escapou por uma estreita tubulação de esgoto. Só conseguiu regenerar o membro mutilado após longas e dolorosas semanas.

As divagações do íncubo foram interrompidas pela voz aguda da bruxa:

— Posso contar com teu apoio, Ladaimes? — disse ela, sentindo-se já triunfante.

— O que você quer em troca, madame? — por um breve momento, os olhos do lilim brilharam em seu aspecto original.

— Uma onghia del’incubo, meu caro... talismãs são fundamentais em meu ramo...

O íncubo pensou por mais uns instantes.

— E se for uma armadilha? — ele agarrou o braço de Baiarda, num golpe extremamente rápido.

— Use seu poder de sedução em mim... use-o para detectar alguma mentira em meus atos... — Ladaimes surpreendeu-se com a repentina ousadia da bruxa, que acabara de sugerir uma ação arriscada.

— Está disposta a correr o risco? — disse ele, saboreando as possibilidades da ocasião.

— Sim, farei qualquer coisa para provar minha sinceridade. Este é o nosso pacto: um pedaço de sua unha em troca de dez segundos sob o teu poder. Uma vez certificado, seremos aliados.

— Como identificarei a guerreira darciana? — perguntou o demônio.

— Ainda não sei, mas prometo que investigarei através de meus contatos.

Ele passou seu braço musculoso ao redor dos ombros da mulher franzina. Bastou um beijo no pescoço para fazê-la suar em profusão. Relutante, foi deixando-se gradualmente envolver pela magia do íncubo. Ele passou as mãos em seus quadris, e lambeu o suor salgado que escorria abundante em suas têmporas.

— Você é minha inimiga? — fez a primeira pergunta.

— Não — a resposta confirmava as boas intenções.

— Está armando uma cilada?

— Não.

— Você conhece a caçadora? Pode descrevê-la?

— Não.

As respostas agradaram a Ladaimes, que sentiu-se mais seguro, sabendo que ganhara uma nova “aliada”. Já podia libertar a moça de seu charme sobrenatural.

Mudou de idéia — seus impulsos sexuais foram mais fortes, como sempre. Em vez de restaurar a sobriedade da mulher, preferiu brincar um pouco:

— Desabotoe sua blusa. Eu quero ver um pouco mais de você.

— Imersa no controle hipnótico, Baiarda começou a abrir os botões. Livre de qualquer pudor, abriu rapidamente a jaqueta, expondo os seios, enfiados em um sutiã semi-transparente.

— O que é bonito é para se mostrar — disse ele, com a lascívia estampada nas feições de deboche.

— Eu acho que vi um mamilo — disse ele, testando seus impulsos cômicos. Beijando-a ma boca, passou a mão no ventre macio. Uma súbita dor intensa de queimadura interrompeu a diversão. O berro do íncubo chamou a atenção até dos bêbados que circulavam por perto.

— Acho que estamos conversados, Sr. Tony. Mais alguma pergunta? — Baiarda Bach estava novamente no controle da situação. Em sua pele pálida exposta, trazia uma série de símbolos místicos tatuados por todo abdômen.

Tornou a abotoar tudo.

Crux Castarum — disse ele, praguejando e reclamando da dor caústica que fluía pelo seu braço. A simples visão da marca já causava-lhe uma onda de repugnância inebriante. Fechou os olhos, tentando sufocar o nojo.

As marcas tatuadas com esmero formavam o imemorial signo arcano da Crux Castarum, cuja propriedade de repelir íncubos e súcubos foi redescoberta por monjas leonesas no século XIII, que rebatizaram-no com o nome latino. A destemida ousadia da bruxa tinha bases sólidas fincadas num senso cauteloso de prevenção total.

— O pacto está feito, menina. Pode sair agora — um pedaço de sua unha foi entregue como prova da aliança.

Ela se despediu, deixando-o sozinho no salão enfumaçado. Assim que saiu do bar, ela pôde deixar de lado um pouco o ar sisudo de ocultista fria. Por um breve momento, a lembrança do contato com o íncubo causou-lhe uma sensação gostosa, que ela preferiu não inibir.

Afinal de contas, tinha conseguido o que queria: não custava nada saborear a vitória.

AS AMIGAS DE TONY foi escrito por Simões Lopes


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