O poste defeituoso não chegava a iluminar a rua estreita, deixando que um manto de escuridão escondesse boa parte dela. Uma mulher pequena de cabelos escuros corria com muita pressa, desviando dos buracos na calçada. No alto de um muro não muito alto, dois gatos passavam correndo, com os olhos luzentes.
Glenda Marques estava ansiosa em achar sua amiga Zuleica Silveira, a Tia Zu, como preferia ser chamada. Não pensou duas vezes em subir no muro, com uma agilidade que causaria espanto se alguém a pudesse ver naquelas horas. Os felinos começaram a berrar, como se reclamassem da estranha companhia. Calculando a posição certa da janela do apartamento 202, ela parou por um breve momento, como se tomasse fôlego, e saltou.
Os mais de três metros que separavam a borda do muro da marquise que rodeava o segundo andar foram transpostos com um simples impulso. O feito, aparentemente impossível para uma pessoa normal, era algo corriqueiro para Glenda, que, definitivamente, não era uma pessoa normal. Ela era um Nefilim, uma filha de Anjo, o que lhe conferia alguns dons sobrenaturais. Equilibrada no espaço estreito da marquise, ela começou a bater nas janelas do quarto da amiga.
— Zu! Zu! Sou eu, Glenda!!! — era obrigada a falar baixo para não chamar a atenção de ninguém na rua.
— Zu! — bateu timidamente na janela, e sentiu que Zuleica jamais acordaria assim. Teria que entrar de qualquer jeito.
Mais alguns gatos juntaram-se à dupla que circulava pelo muro de concreto, e começaram a miar, cada vez mais alto, como se estivessem ofendidos com a invasão de seu território por aquela estranha mulher saltitante.
O barulho da gataria perturbou a concentração de Glenda, que perdeu a calma. Numa atitude condizente com seu apelido entre os Acólitos — Súbita —, invocou seus poderes inumanos. O poste apagado na rua piscou por uma fração de segundo, o suficiente para espantar um morcego que se pendurava numa castanheira, e a mulher tornou-se translúcida.
Após atravessar as paredes como um fantasma, Glenda materializou-se junto à cama de sua amiga. Foi quando Súbita percebeu que Tia Zu não estava sozinha. A loira alta de cabelos encaracolados dormia abraçada a um rapaz musculoso, que roncava feito um leão. O arrependimento fez com que Glenda ensaiasse uma saída imediata, mas antes que ela tentasse buscar forças para refazer seu caminho de volta, Zu acordou, soltando um palavrão tão alto que acordou seu amante.
— O que está... Súbita... Glenda? — gritou ela, ao perceber a presença da amiga, ao mesmo tempo, que o homem abria os olhos.
— Quem é...ei! O... — disse o homem, antes de ter seu rosto agarrado com força pela namorada. Uma tênue aura de faíscas azuladas rodopiou ao redor da cabeça do homem, e apenas Glenda podia enxergar as asas luminosas que abriam-se ao redor dos ombros nus de Zuleica, uma indicação mágica de que ela estava manifestando seus poderes.
—Vai dormir, Maurício — cochichou ela ao ouvido do amante, que caiu em profundo torpor.
Ajeitando as alças do baby-doll sumário que usava, Zuleica levantou-se, e Glenda sentiu-se fuzilada pelo olhar furioso da colega.
— Eu espero que você tenha uma razão muito forte para estar aqui no meu quarto, às... ela deu uma conferida no relógio da cabeceira... às 4h23 da matina!!! Pode começar a falar!!!
Glenda balbuciou: — Zu, eu, é, Zu, o Anjo Ganu’el apareceu para mim e me entregou...
— Heim? — protestou a amiga, atônita.
— Ganu’el, Kerubim, como nosso pai, ele me entregou um papiro que fala de segredos da Rebelião... — Súbita não sabia exatamente como explicar tudo de maneira didática.
— Cadê o papiro?
— Ele escondeu.
— Aonde?
— No meu sonho.
— Ah, no seu sonho! — o tom era de ironia.
— O papiro não pode ficar no plano físico.
— Ah. E porque ele não escondeu no meu sonho? Eu estava dormindo. Ia poupar tempo e esforço...
— Zu, você tá chateada comigo!
— Puxa, será? Por que eu estaria chateada com alguém que invadiu minha casa e me acordou de madrugada pra...
— Zu, não fica assim!
— ... Me acordou pra dizer que sonho com os anjinhos! Todos nós sonhamos, Glendinha! Isso não é motivo pra me encher o saco!
— Ele disse que meu defeito era minha maior qualidade...
— E você sabe qual é o seu maior defeito, né? Eu não preciso repetir, preciso?!
— Zu, eu sei que eu sou afobada, mas os Acólitos precisam...
Glenda não conseguiu nem terminar a frase. Zuleica agarrou-a pelo braço, e praticamente arrastou-a para fora do quarto.
— Os Acólitos precisam é dormir! — gritou Zu, enquanto expulsava a colega pela porta da frente. — Além do mais, não sei se a senhorita notou, eu tenho companhia.
— Desculpa, Zu... — o rosto de Glenda estava levemente corado.
— Aliás, era bom você arranjar um homem, também, pra não ficar nas madrugadas inventado desculpas pra acordar as amigas. Boa noite!!! — Glenda sentiu a porta fechar-se quase em seu nariz.
— Eu não inventei nada! — Glenda era só decepção, sentiu uma vontade súbita de chorar. — Esse Papiro Semiázico existe mesmo!
— Adeus, goodbye, tchau!!!
—Zu, a esta hora a portaria está fechada... — o tom era de súplica.
— Você conseguiu entrar, vai conseguir sair!! — gritou a Tia Zu, lá de dentro.
— Mas eu preciso... — Glenda começou a chorar.
— É bom ir embora, antes que eu fale o que você realmente precisa!
Passaram-se alguns minutos, e Zuleica certificou-se que Glenda já tinha ido embora. Foi até a geladeira beber um pouco de água, e voltou para a cama, onde seu amante roncava. Ajeitou-se nas cobertas e pegou no sono. O relógio marcava 4h38.
4h45. Mauro puxou o cobertor para o seu lado, o que não pareceu incomodar a moça.
4h50. Zuleica balbuciou algumas palavras sem sentido. Do lado de fora, um vento forte fez as janelas sacudirem, de leve.
5h00. Mauro virou-se de lado, abraçando a namorada.
5h05. Uma baratinha caminha alegremente pelo chão do quarto, e desparece numa fresta atrás do armário de roupas.
— PAPIRO SEMIÁZICO???? — grita a moça de cabelos claros, ao acordar de sobressalto. — PAPIRO SEMIÁZICO!!!! — ela salta da cama de um só movimento. Ao seu lado, Mauro desperta mais uma vez:
— Gatinha... hmmm... o que.... — balbucia ele, enquanto procura em vão por sua amada. Ela retorna, e mais uma vez toca suas têmporas com as mãos espalmadas.
— Volta a dormir, Maurinho. Tá muito cedo, ainda. O relógio marcava 5h15.
Ele cai mais uma vez em torpor, e Zuleica segue apressada para o outro quarto. Abrindo a portinhola de um velho armário de madeira avermelhada, puxa uns cadernos e procura por algumas citações. Não achada nada, mas continua cismada.
“Eu tenho certeza que já li sobre um Papiro Semiázico em algum lugar!”, pensa enquanto tenta reorganizar as idéias. “Ou foi alguém que me falou?”, as dúvidas povoam sua mente, enquanto fuça em outra gaveta. “Gargântua? Boop Betty? Ânderson? Quem me falou sobre isso?”, ela vai até a escrivaninha, e puxa a espaçosa gaveta inferior. Removendo uma tábua oculta, ela puxa um caderninho decorado com desenhos de flores. Ela procura avidamente pelo índice feito a mão na última folha.
“Isso!”, seus olhos não escondem o contentamente. Lá estavam nas anotações de sua colega Boop Betty, uma anotação sobre o tal Papiro, que fez parte do acervo de um colecionador austríaco em 1921. Após o incêndio que destruiu a casa e vitimou todos os seus habitantes, o dito manuscrito nunca mais foi visto.
* * *
Já eram sete horas da manhã quando Glenda Marques foi acordada pelo barulho do telefone. Ainda sonolenta, ela tirou o fone do gancho e atendeu.
— Glenda, eu te devo mil perdões. Desculpa.
— Zu, é você?
— Precisamos conversar, chego aí em quinze minutos! — desligou.
Glenda pôs o telefone no gancho e abriu um largo sorriso. Pôs um bule no fogão para esquentar água, e tirou o pote de café solúvel do armário. Abriu um pacote de biscoitos salgados.
Sua amiga ia chegar a qualquer instante.
Assunto é o que não ia faltar...
foi escrito por Simões Lopes
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