quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Conto Rebelião 83: O Convento de Santa Felicidade


Fazia muito frio ao ar livre quando Jeanne estacionou o seu carro. Ainda teria que andar mais uns trezentos metros para alcançar o portão do convento, o que não seria um incômodo. A geada fina que cobria a calçada de pedras retangulares dificultava um pouco a caminhada, mas a mulher alta de cabelos cor-de-palha prosseguiu com passos lentos e cuidados.

O cheiro agradável de um guisado de carne indicava que já era hora da ceia noturna no Convento de Santa Felicidade. Jeanne d’Agen ajeitou seu grosso casaco de lã de ovelha e suspirou com força, exalando uma grossa nuvem de vapor condensado. O portão de madeira escura trazia em seu centro um batente de ferro decorado com a cabeça entalhada de um demônio.

Deu três vigorosas batidas, que ecoaram com força.

Após um breve instante, uma senhora de meia-idade, coberta por um hábito branco, veio atendê-la:

— Boa noite, querida amiga, aqui é o Convento de Santa Felicidade. Vivemos para servi-la — disse a mulher, apresentando-se com um largo sorriso.

— Caminho sob a proteção de Santa Margarida de Antioquia, São Miguel Arcanjo e Santa Catarina do Monte Sinai. Muita paz para nós! — respondeu prontamente, com uma espécie de fórmula decorada.

— Estás ungida pelos protetores de Santa Joana d’Arc. Venha comigo, irmã.

Assim que a porta pesada fechou-se atrás delas com um estampido, as duas adentraram um corredor estreito e escuro, iluminado por dois pequenos lampiões presos ás laterais da parede.

— Meu nome é Jeanne de Biarritz, irmã darciana — apresentou-se a senhora, piscando os expressivos olhos negros com uma freqüência que indicava um próvavel tique nervoso.

— Eu me chamo Jeanne d’Agen, irmã darciana — respondeu ela, como se respondesse a uma espécie de senha.

O corredor desembocava numa sala ampla, onde um grupo de crianças esfomeadas acomodava-se em compridos bancos que serviam de assento coletivo em duas enormes mesas de jantar. Os pratos estavam cheios com uma sopa avermelhada e nutritiva, cujo cheiro era maravilhoso. Antes de pisar no recinto, a visitante despiu-se de seu grosso agasalho e trocou-o por um manto branco pendurado num cabide de prata. Vestindo-o com bastante cuidado, enfiou os braços nas mangas acolchoadas com um forro triplo de pano rústico. Sua guia, que vestia um traje semelhante, atravessou o refeitório distribuindo sorrisos e afagos para os pequenos órfãos, e acenou para uma moça alta de olhos azuis que servia comida a uma idosa velhinha cega.

—Nannette, onde está Ophelie? — perguntou ela para a freira mais moça, num tom quase sussurrado.

— Em seus aposentos, trabalhando — respondeu, enquanto levava a colher cheia de mingau à boca da senhora quase centenária.

Jeanne de Biarritz, ou Irmã Brigitte, como devia ser chamada quando na presença de visitantes e quaisquer pessoas que não fossem suas irmãs no Convento de Santa Felicidade, deu meia-volta e conduziu sua nova hóspede por uma escada em caracol que subia até o segundo andar. Após percorrerem um labirinto de corredores, passando pelos aposentos pessoais e subindo mais um andar de escadas, chegaram a um quarto isolado em cuja porta estava entalhada uma rebuscada imagem de Santa Margarida arrebentando o ventre de um dragão feroz, conforme a tradição medieval. A freira anunciou-se com um assovio prolongado.

Não houve resposta.

Jeanne de Biarritz insistiu.

Passaram-se mais alguns minutos silenciosos, até que a porta finalmente foi aberta.

Uma senhora de pele bem morena e olhos claros veio atendê-las, vestindo um avental cinzento. Não parecia contente.

A mulher de olhos negros apressou-se com as apresentações:

— Esta é Jeanne d’Agen, irmã darciana — a frase não provocou nenhuma alteração no humor na mulher avental, que respondeu com ar taciturno.

— Eu sou Jeanne d’Orléans, Mestra Antioquiana — a freira de avental apresentou-se desta forma. — Convoquei-a a pedido de Jeanne de Calais.

Jeanne d’Agen prontamente identificou sua citada benfeitora: Jeanne de Calais trabalhara com ela em Madri, no Convento de Santa Ifigênia, por longos três anos, e conhecia muito bem o seu valor. Se havia sido chamada, é porque a missão era crucial.

Jeanne d’Agen — que nascera no Canadá como Antoinette Pliquet — era uma freira da Legião d’Arc, ordem religiosa que mantinha uma extensa rede de conventos, hospícios e orfanatos espalhados pelo mundo, através dos quais ajudavam os pobres, os abandonados e os enfermos. Secretamente, no entanto, os objetivos da dita ordem consistiam em transformar mulheres em santas guerreiras, inspiradas na figura da gloriosa mártir Joana d’Arc. Ao receber o hábito da Ordem, as mulheres — obrigatoriamente virgens e castas — eram batizadas com o nome iniciático de Jeanne mais um sobrenome baseado em alguma cidade francesa. Deviam integrar a partir deste momento, um dos Três Terços em que a Legião estava dividida: As Sinaíticas, especializadas nas doutrinas e nos conhecimentos secretos que a Legião guardava, atuando como professoras e orientadoras; as Antioquianas, especializadas nos ofícios de metalurgia e alquimia, com os quais fabricavam armas de poderes fenomenais; e as Arcangelistas, como Jeanne d’Agen, guerreiras que dedicavam suas vidas a treinar mente e corpo a fim de combaterem sem temor o Mal em suas várias formas.

— Jeanne d’Agen, Caçadora Arcangelista. Apresento-me de corpo e alma para a missão que os Anjos e os Santos Mártires me confiarem — as duas tocaram os dedos indicadores em sinal de cumprimento. Jeanne d’Orléans carregava no pescoço um pesado crucifixo de ouro branco. Os cabelos curtos, negros e espetados, pareciam ensebados com alguma espécie de gordura. As bochechas estavam cobertas de fuligem, e suas mãos mostravam marcas semelhantes.

— Desculpem-me a recepção indigna, mas estou forjando mais uma arma. Acompanhem-me. Por aqui — apontou com os dedos para uma divisória interna no quarto, junto a uma janela de vidro escurecido. O lugar mais parecia um laboratório ou uma oficina. Prateleiras com frascos transparentes contendo diversas soluções químicas decoravam as paredes. Um grande forno crepitava no fundo do recinto, e duas grandes tinas cheias de água pareciam próximas do ponto de fervura.

— A freira forjadora vestiu duas grandes luvas de amianto e ergueu um enorme tenaz. Com cuidado, mergulhou-o numa das tinas fumegantes, retirando uma adaga de bronze. O metal ainda cálido projetava reflexos avermelhados nas calotas metálicas que revestiam as bancadas laterais. A artesã tornou a mergulhar o objeto na água.

— Uma adaga santa, sete vezes benzida, sete vezes temperada; sete vezes amolada — juntou as mãos em posição de prece. — Devo a minha vida à irmã Jeanne de Calais, e um pedido dela é uma ordem. Aceite este presente de uma amiga sempre fiel.

— Obrigado. Eu posso notar que os Anjos estão presentes neste local, e com esta nova arma, a Vontade de Deus será feita — agradeceu o presente, em tom solene.

A adaga foi mais uma vez retirada de seu invólucro líquido, e ainda aquecida, conduzida pelas garras do tenaz até a Caçadora Arcangelista. Não se importando com o calor escorchante, segurou a adaga com as mãos nuas.

— Eu aceito esta arma, e a consagro em nome de São Miguel Arcanjo, Guerreiro de Deus, Vencedor de Satã, Espada Flamejante dos Santos!

— O calor do metal incandescente provocou um chiado desagradável ao encostar na pele úmida. Sem demonstrar dor alguma, fechou os olhos, realizou uma prolongada oração, no que foi acompanhada pelas duas outras freiras.

Brandiu a arma por instantes no ar, como se traçasse um símbolo específico com as linhas de movimento. Assim que terminou o misterioso ritual, pousou a arma num suporte ladrilhado.

Fora do alcance de sua dona, a arma pareceu brilhar intensamente, e inflamada por um turbilhão de chamas alquímicas, suas formas alteraram-se como se modeladas por uma oleira invisível. Ao fim da improvável transformação, a adaga havia transformando-se num inofensivo pente de dentes metálicos, de aspecto vulgar. Jeanne guardou-a num bolso.

— A quem devo combater, Mestra Antioquiana? — perguntou, já ansiosa em cumprir seus deveres.

— Localizamos o íncubo blasfemo que desencaminhou a Irmã Jeanne de Rodez. Ele se chama Ladaimes, e perambula pela Ilha de São Dimas, na Baía de Guanabara.

— Brasil?

— Sim. Jeanne de Calais indicou-a por que você é fluente em português, espanhol e italiano. Não podemos aceitar que tal aberração ainda caminhe sobre a Terra, depois do que ela fez com uma das nossas.

Jeanne de Rodez fora uma das mais promissoras noviças do Terço Sinaítico, mas terminara por cair vítima do poder de sedução de um íncubo, uma espécie demoníaca do Segundo Círculo do Inferno. Jeanne d’Agen já havia desencarnado dois lilim — o nome hebraico de tais criaturas — como caçadora de criaturas infernais, e sentia-se apta em acrescentar mais um feito à sua coleção de sucessos. Perguntou pelo estado da irmã seduzida.

— Tivemos que enclausurá-la, até conseguirmos desfazer os efeitos da luxúria maligna. Seu estado é lastimável. Transtornada pela loucura arrebatadora, comporta-se como um animal inferior, maldizendo a todas aquelas que ainda tentam auxiliá-la.

— Preciso vê-la — disse a freira guerreira, com muita ênfase.

— Não será uma visão agradável. — argumentou sua interlocutora.

— Eu preciso fazer isto. Saber em que estado a querida irmã ficou só aumentará meu ânimo para a o confronto.

Compreendendo a convicção da guerreira, as irmãs consentiram em guiá-la até a cela da mal-fadada noviça.

A dita “cela” ficava no subsolo. Uma escadaria muito estreita, de pedra, tão antiga que parecia escavada no próprio solo original do casario, conduzia a um conjunto de pequenas celas gradeadas. Uma freira bem alta e corpulenta — seu nome era Jeanne de Cergy — guardava o andar subterrâneo. Por trás das grades, a Arcangelista de cabelos claros ouvia gritos horrendos, misturados a gemidos arfantes. Uma mulher desvairada pronunciava blasfêmias inomináveis e mais parecia mais um animal selvagem.

A caçadora não teve medo de espiar pela grade, e sentiu uma pena profunda daquela pobre alma enclausurada. Aquela que um dia fora uma das mais sábias Sinaítas da Legião, Jeanne de Rodez — nascida Graciana de Lara, na cidade portuguesa do Porto —, rastejava pelo chão frio da cela com os cabelos desgrenhados e a baba escorrendo pela boca entreaberta. Grossas correntes de metal bento prendiam seus ombros a um suporte na parede, e seus braços estavam atados por algemas de couro, evitando movimentos mais abruptos. Presa à parede, o máximo que a mulher conseguia fazer era circular pela cela girando a corrente como um cão encoleirado.

Ao sentir a presença de alguém espiando, ela ergueu-se de cócoras, expondo sua metade inferior desnuda, e soltou uma gargalhada. Com o olhar fixo na Arcangelista, ela deixou escorrer um jato forte de urina pelas pernas.

— Me tirem daqui!!! Suas vacas imundas!!!! Eu quero um homem!!! Um homem!!!!

Jeanne d’Agen meditou um pouco, e rezou silenciosamente por sua ex-colega. A mulher cativa continuou gritando impropérios. Num gesto agressivo, virou-se de costas e rolou no chão. Virou as nádegas para a porta e sacudiu-as naquela direção.

— Vocês não sabem como é bom ter um homem!!! Me soltem e eu vou trazer mil íncubos para nos possuírem!! O que falta pra vocês é uma grande...

A Arcangelista preferiu não ouvir o fim da frase, e com a raiva estampada nos olhos semi-cerrados, fez o caminho de volta galgando os degraus subterrâneos com tamanha rapidez, que suas companheiras não conseguiam acompanhar.

Pediu que fosse levada à Capela do Convento, e lá chegando, deitou-se no chão, de barriga para cima, os braços e pernas estendidos. Enquanto as irmãs darcianas Jeanne de Biarritz e Jeanne d’Orléans fechavam a porta da capelania, Jeanne d’Agen começou a entoar as ladainhas do Cântico de Santa Joana Guerreira.

Retirando o pente do bolso, levantou-o, apontando na direção do teto. Todas as velas da capela começaram a acender-se, uma após a outra, por si mesmas. À medida que as chamas ganhavam mais volume e calor, o cântico prosseguia, e o pente transformava-se mais uma vez na sua forma original de adaga de bronze. Com a outra mão, ela tirou um longo rosário de outro bolso, e balançou-o, apoiando-se nos joelhos. Uma vez ajoelhada, sem deixar interromper a música, rodopiou o rosário até que este assumisse a forma de um chicote dourado luminoso.

Empunhando suas armas benditas, energizadas com a mais pura luz celestial, fixou a vista no teto abobadado da capela, e onde antes só se viam vigas de madeira escura e embolorada, resplandeciam as imagens diáfanas de São Miguel Arcanjo, Santa Catarina do Monte Sinai e Santa Margarida de Antioquia. Com os olhos vidrados pelo êxtase místico, sentiu seu corpo queimando, mas não se deixou dominar pela dor.

— POR NÓS, TU FOSTE QUEIMADA, SANTA JOANA — gritou, e as chamas das velas agora pareciam explodir como as labaredas de um incêndio.

— POR TI, EU SINTO O ARDOR DO FOGO — seu corpo tremia em frenesi.

— O HOMEM SENTENCIOU SANTA JOANA AO FOGO INFERNAL — a pronúncia era límpida, os olhos fixos no assoalho, de onde pareciam brotar chamas.

— MAS DE DEUS ELA RECEBEU O FOGO CELESTE — não tirava os olhos do alto, onde as três entidades incorpóreas pareciam bailar em meio à claridade cegante.

— SÃO MIGUEL ARCANJO REVIGORA MEU CORPO, SANTA CATARINA AGUÇA MINHA MENTE, SANTA MARGARIDA ZELA POR MINHA ALMA.

O cântico foi encerrado por um grito estridente, quase animalesco. As chamas enlouquecidas ziguezagueavam como cometas pela capela, rodopiando ao redor da cabeça de Jeanne d’Agen e reluzindo no metal candente das armas celestes.

— AMÉM.

A capela voltou ao seu aspecto original. Não havia mais nenhum sinal de fogo ou de imagens astrais. A caçadora arcangelista Jeanne d’Agen, ajoelhada, não disse mais nenhuma palavra, não emitiu mais nenhum som.

Quando ela saiu da capela, suas camaradas perceberam que ela já estava pronta para a batalha. Sem dizer nenhuma palavra, ela recebeu de Jeanne d’Orléans as últimas instruções necessárias para localizar o demônio sedutor.

Deixou uma generosa contribuição ao ofertório de convento, e saiu.

As irmãs do Convento de Santa Felicidade, mais uma vez, voltaram a seus afazeres cotidianos: bocas a alimentar, ferimentos a tratar, doentes a consolar.

Fazia muito frio lá fora.


O CONVENTO DE SANTA FELICIDADE foi escrito por Simões Lopes


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