quarta-feira, 25 de junho de 2008

Rebelião 80: O Último dos Jaguaranas


O chão estava tão quente que nem mesmo os calangos agüentavam caminhar pela trilha natural de terra que se abria por entre dois paredões de pedra. Leutério Jaguarana continuava a fugir, com os pulmões ardendo pelo esforço hercúleo. Apesar da sensação de tonteira, ainda podia escutar o barulho distante dos cavalos. A jagunçada do Coronel Sanfins tinha vindo em peso para a caçada, e até mesmo os sumidos Cristino Timbu e Tonho haviam retornado de bem longe para atender as ordens de seu temido patrão.
Leutério sabia muito bem o que estava fazendo quando acertou um balaço bem no meio dos olhos de Silvestre, o filho mais velho do “Coronel” Honorino Sanfins. Essa família de cascavéis tinha encomendado a morte de seu pai, o Coronel Glicério Jaguarana, e nem o seu tio mais velho, o seráfico frei Cupertino, pôde escapar da vingança sanguinolenta dos Sanfins. Quando o torturado frade morreu em seus braços, Leutério jurou que faria justiça. A batalha sangrenta entre Jaguaranas e Sanfins era tão antiga que prosseguia atravessando gerações, e ninguém mais era capaz de dizer como tudo isso havia começado. O avô paterno de Honorino matara o avô de Glicério; morte essa vingada pelo seu filho Catão Vitulino, que degolou o algoz do pai com um golpe certeiro. Uma sucessão de mortes deu prosseguimento ao ódio recíproco, numa retaliação contínua que — dizam todos — iria perdurar até o final dos tempos.
Uma súbita idéia fez o jovem Jaguarana interromper sua corrida. Usando como apoio um arbusto baixo, mas de tronco firme e bifurcado, aninhou-se nas frestas do paredão rochoso, e começou uma temerária escalada.
A batida de cascos contra o chão duro denunciava a chegada iminente do primeiro de seus perseguidores. Com o rabo do olho, Leutério conseguiu divisar a imensa figura de Tonho, o capataz da segunda fazenda do Coronel Honorino. Recuperou o fôlego — o coração palpitava forte — e continuou em sua escalada.
— O desgraçado sumiu, Dotô Bertoldo! Óia as pegada... — apontou o jagunço para o homem louro que vinha logo atrás.
— Ele não pode ter ido longe... olhos abertos! O bandido vai dormir hoje com Satanás! Eu juro pela alma do meu irmãozinho!!!
Do alto de seu esconderijo no penhasco, Jaguarana reconheceu aquela voz fina: era Bertoldo Sanfins, o segundo filho do inimigo de seu pai. Formado em Direito, o homem era culto e ilustrado, mas mesmo assim incapaz de se desvencilhar do fio sangrento da vingança ancestral que enredava os Jaguaranas e o Sanfins.
Cristino Timbu, com enormes dentes brancos contrastando com a pele de ébano, apeou de sua montaria e pôs-se a vasculhar a trilha de pegadas na chão árido. Olhou à sua volta, como se imerso num transe fantasmagórico, e cheirava o ar com um certo exagero. Parecia um animal saindo à caça. Pegou um punhado de areia, esfregou e jogou fora. Repetiu o gesto umas três vezes, pelo menos. Com os pés, calcou a ossada de uma onça, morta já há meses, e fez cálculos silenciosos. Brincou com a mandíbula cadavérica, e então mudou de direção.
Leutério continuou subindo, tentando ser o mais silencioso possível. Só faltavam alguns palmos para chegar ao topo. Uma vez lá, estaria fora do alcance de qualquer ataque.
Só mais um pouco...
Cristino cochichou algo no ouvido de Tonho, que soltou um sorriso. Se Leutério Jaguarana visse, perceberia o que estava acontecendo. Mas na posição incômoda onde estava agora, já não podia mais olhar para baixo.
— O borra-calça foi pra lá, deve de tá iscundido nos mandacaru! — gritou Tonho, que ao mesmo tempo puxava as rédeas do seu pangaré malhado. Fez um gesto para Bertoldo, que limitou-se a um simples aceno.
— Vai na frente, Timbu! — berrou o filho do coronel, descendo do cavalo e tirando sua arma da bainha de couro.
Leutério Jaguarana subiu com todo cuidado mais alguns centímetros. A distração dos jagunços ia garantir o tempo necessário para a escapada.
Mais um movimento...
O sol do meio-dia queimava inclemente no seu rosto. As gotas de suor escorriam como um rio meloso.
Firmou a mão esquerda na superfície áspera da rocha. Apesar de machucada, ela suportou bem os oitenta quilos do bravo nordestino.
Mais um pouco...
Leutério só ouviu o tiro quando era tarde demais. Não sentiu mais nada, apenas uma leveza infinita enquanto parecia flutuar no ar. Com o olhar fixo para o alto, ele só via o céu azul-claro radiante e profundo.
“Eu não quero morrer”, o pensamento não durou mais que um décimo de segundo, antes de bater contra o piso pedregoso.
A tropa de Bertoldo Sanfins gritou em coro, triunfante com a presa abatida.
O próprio filho do Coronel foi o primeiro a chutar o corpo, com um pontapé tão violento que quase cravou o bico do sapato nas costelas partidas do moribundo.
Leutério não emitiu nenhum som quando ergueu-se, para o espanto de Tonho, Cristino e os outros. Por algum estranho motivo, sentiu que a queda não fora tão dolorosa assim.
O efeito da surpreendente “ressureição” do rapaz espalhou a confusão entre seus inimigos. Eles não sabiam se atiravam ou se simplesmente corriam atrás do ferido.
— Oito metros de altura! Como... — a reclamação do Doutor foi interrompida pelos tiros dos seus fiéis empregados, abrindo fogo contra o fugitivo, que corria cambaleante feito um pato.
“Quem me vingará, agora?”, pensou o jovem em seu velho pai, já sem forças, preso a uma cama. Leutério era filho legitimado de Honorino Sanfins com a bela e misteriosa cabocla que abandonara o filho ao nascer. O Coronel ainda casara uma segunda vez, mas não tivera filhos deste segundo enlace.
“Pelo menos a guerra termina comigo”, era só nisso em que ele pensava agora. A disputa secular entre os Jaguaranas e os Sanfins estava prestes a terminar.
Infelizmente, com a vitória definitiva dos Sanfins.
Uma bala perfurou seu ombro, mas não foi capaz de deter sua corrida. Sem medo algum, embrenhou-se na moita de espinheiros, e sentiu pontas afiadas como agulhas rasgando suas pernas e flancos. Outro tiro acertou sua panturrilha, e ele caiu.
Não soltou nenhum grito. Tão concentrado parecia em escapar, teve a sensação de que o ferimento na batata da perna sumira, e sentiu-se mais uma vez apto a levantar e seguir adiante.
Antes que pudesse conferir o real estado da ferida na perna — teria sido de raspão? —, Cristino Timbu o alcançou. O jovem desvencilhou-se do primeiro golpe com relativa facilidade, mas não pôde deter o pontapé furioso que se seguiu.
Caiu mais uma vez, e não iria mais se levantar.
Bertoldo chegou e descarregou a arma no corpo do odiado rival, cuja mão esquerda arrebentou-se numa explosão de sangue. Os flancos transformaram-se numa verdadeira peneira. Um segundo chute esfacelou o nariz. Tonho chegou por último, ansioso em participar do massacre, e arrancou uns dentes com um murro bem colocado. A peixeira pareceu faiscar ao reflexo do sol forte do meio-dia. Leutério já sentiu-se cego quando a lâmina enterrou-se em sua coxa.
Palavrões. Gritos. Um alarido infernal que expressava todo o ódio extravasado durante a carnificina.
— Arranco a cabeça dele, dotô? — perguntou Zé Limeira, com um brilho demoníaco no olhar. O terceiro jagunço passou a mão nos bigodes avermelhados, e brandiu a peixeira com violência.
— Preciso mandar, Zé? Degola o bicho! Vou levar essa carranca pro meu paizinho se fartar de rir... Hoje vai ter quenga e cachaça pra todo mundo!
Os jagunços gargalharam, antevendo a comemoração da noite, e Zé ainda se deu ao luxo de fingir afiar a peixeira numa pedra pontiaguda.
— É prá já... prá já... — disse em tom de deboche. Tonho deu um tapinha amistoso na nuca do amigo.
— Diacho... — reclamou.
— O que foi, hômi... — perguntou Timbu, curioso.
— A desgraçada...tá presa...
Ninguém entendeu a cena. Uma fina camada de cristais formou-se ao redor da lâmina, prendendo-a na rocha nua. Ninguém conseguiu arrancá-la, nem mesmo Tonho, que mesmo com todo seu corpanzil, não conseguiu arrancá-la sequer um milímetro. O repentino problema pertubou o ânimo do grupo, que teve de ouvir uma sonora reprimenda de Bertoldo Sanfins.
Com medo do patrão, Tonho resolveu usar sua própria peixeira, mas antes que pudesse usá-la, uma onça saltou bem no meio do bando, espalhando o terror.
O surgimento inesperado do animal fez com que o enorme nordestino largasse sua arma e corresse na direção dos cavalos. Bertoldo quis disparar na fera, mas ficara sem munição após descarregar sua arma no Jaguarana. Foi salvo por Cristino, que disparou várias vezes no felino. A fera carnívora continuou atacando, como se não sentisse os disparos. Uma patada derrubou Zé Limeira, que teve de ser puxado por Tonho para cima de seu pangaré. Assim que todos conseguiram montar, Bertoldo ordenou que Cristino continuasse atirando para matar a onça. Só pensava em arrancar a cabeça de Leutério e levá-la como um troféu.
O animal feroz continuou evitando as balas e com um salto impressionante alcançou os cavalos, que tomados de um terror incontrolável, acabaram dispararando em retirada, levando os cavaleiros a contragosto para o meio dos espinheiros.
Assim que se viu sozinha, a onça voltou-se para o corpo inerte do rapaz. Os movimentos do enorme felino eram desconjuntados, como se a besta fosse uma marionete de pele e osso. Ela ergueu a cabeça, mostrando as órbitas vazias, e sua pele começou a ressequir, encarquilhando-se tão rapidamente, que em poucos segundos, o que antes parecia ser carne reduzira-se a pó. O vento quente soprou as cinzas, deixando à mostra a ossada deteriorada de uma onça morta, a mesma que estivera ali por meses e meses.
—VIVOS MORREM E MORTOS REVIVEM.
Uma delicada camada de cristais formou-se ao redor da faca, e continuou crescendo como se estivesse pulsando com vida própria. Do ponto de origem partiram várias trilhas de gemas brilhantes, confluindo na direção do cadáver do pobre homem. O espaço estreito entre o corpo e o chão de terra foi preenchido com um leito de pedras macias, em cima do qual repousava o defunto. A luz solar filtrada pelos minerais parecia envolvê-lo numa estranha aura luminosa, e acima daquela massa cristalina materializou-se lentamente uma diáfana silhueta. À medida que sua cor e textura realçavam-se, o ser de luz convertia-se numa bela mulher, de pele morena e longuíssimos cabelos negros. Ela acariciou o homem ensangüentado e ferido, pressionando suas têmporas com uma delicadeza maternal. Passou os esgios dedos nas chagas expostas, fazendo-as curar-se instantaneamente.
— UM FILHO MEU NÃO MORRE ASSIM — sussurrou ela ao ouvido do homem. Os olhos dela brilhavam como jóias: mais pareciam duas opalas negras. Ela beijou-o nos lábios, e soprou.
As pálpebras de Leutério Jaguarana abriram-se mais uma vez, e a vida voltou pulsando em seu coração, que pulsava com mais força do que nunca. Seus olhos negros reproduziam a mesma resplandecência sobrenatural das pupilas da mulher fantasmagórica.
Eram as pupilas de sua mãe.
Ela toma-o nos braços e verte lágrimas de sangue translúcidas. A luz que emana de seu olhar torna-se tão intensa que o tempo parece cristalizar-se. Asas cristalinas surgem em suas espáduas bronzeadas, fazendo-a levantar vôo, como um paradisíaco pássaro de diamante.
Carregando seu filho nos braços, ela desce em um manancial de águas límpidas que brota bem atrás dos penhascos que cercam a mata espinhosa. Mergulha o corpo ferido no rio, lavando suas últimas feridas ainda abertas.
É hora de purificá-lo.
Regenerando a carne que não é verdadeiramente carne.
Purgando sua alma dos pecados de uma vida que não era sua.
Ela cochicha algo em seu ouvido. Segredos são revelados. Mistérios ocultos por uma vida inteira vão sendo desvendados, um a um, enquanto um renascimento é planejado. Ela lhe fala de seus verdadeiros irmãos, e de como encontrá-los.
Quando Leutério Jaguaerana viera a sentir-se completamente regenerado, de corpo, mente e alma, ele não irá mais ter preocupações com os Sanfins, vinganças ou obrigações familiares.
Ele agora sabe quem é a sua verdadeira família.

O ÚLTIMO DOS JAGUARANAS foi escrito por Simões Lopes
Retornar ao Universo Germinante

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