quinta-feira, 25 de junho de 2009

Rebelião 86: O Despertar do Rei


Eu podia sentir meu corpo sendo coberto pela terra fria e úmida. Meus sentidos, ao mesmo tempo, embotados e expandidos, traziam-me apenas o cheiro acre das ervas aromáticas e do incenso abrasador. Curvas de luz colorida serpenteavam num céu amarelo com raios púrpura e nuvens azul-marinho. Em um piscar de olhos, o céu transmuta-se num vermelho-sangue intenso, e sinto o gosto doce do mel fermentado em minha língua. Um cântico suave ecoa nas profundezas de meu cérebro — estarei sonhando?

Senti muito frio, antes de sentir um calor intenso que parecia cozinhar minha pele ressecada. Mergulhei nas trevas profundas, para ser desperto por uma explosão de luz que reverberou por cada poro de meu corpo. Vi as águas serem divididas, acima e abaixo de meu corpo esquálido e transparente. Ainda estou adormecido. Vi o sol, a lua e os planetas girando ao meu redor, e vi a terra seca cobrindo-se de vegetação. Nadei com os peixes prateados, ao mesmo tempo que voa num céu escuro com uma revoada de grandes pássaros vermelhos.

Fiz uma pausa para tomar fôlego.

Inspirei profundamente, e me percebi montado no dorso de um grande touro de chifres dourados, correndo por uma planície infinita com sua manada de bestas magníficas. Lançado no chão duro, perdi-me numa floresta silenciosa, e chorei copiosamente. Meu choro foi consolado por uma mulher nua, que beijou-me na face e ofereceu-me um verde figo suculento.

Mordo o fruto.

Uma vez.

Muitas vezes.

Quero devorá-lo por inteiro, mas paro horrorizado, vendo os vermes sanguíneos que brotam de sua cerne podre. Minha companheira grita e é tomada pelos vermes que assumem a forma de uma serpente de escamas escarlates.

A Natureza parece berrar, desaprovando nosso pecado. Vejo a floresta murchar e ser reduzida a um deserto de areias brancas. Nós choramos e cambaleamos pelo solo rachado e seco, os pés queimados pela areia fumegante, feridos por espinhos afiados.

Minhas lágrimas escorrem, meus dentes rangem de dor. Vejo a serpente crescer como um dragão que parece querer engolir o mundo. Vejo monstros de metal marchando à minha volta, o chão tremendo com aquelas passadas titânicas. Um rio de óleo negro irrompe do chão apodrecido, engolfando-me numa névoa de odor fétido e causticante.

Uma tempestade elétrica atravessa a atmosfera com o cheiro sulfuroso dos demônios triunfantes. Vejo minha amada ser carbonizada por uma descarga fulminante. O dragão sibila em sua lúbrica felicidade, as escamas rútilas brilhando em meio à escuridão que reina absoluta.

Eu sinto saudade do Paraíso.

Satanás captura-me entre suas garras.

Eu não choro.

Eu rezo.

Mais uma vez, uma explosão luminosa afasta as sombras.

Eu sinto a Vida renascer.

* * *

Meu corpo está formigando.

Não consigo, ver, nem ouvir nada. Sinto em meu rosto uma máscara rígida, e meus pulmões parecem sufocar. Meus braços e pernas estão atados. Quero gritar, mas não consigo.

* * *

Sinto um ardor correndo-me a face, e sinto a máscara de cera partir-se ao meio, libertando-me. Percebo um sacerdote trajando uma vestimenta de folhas munido de uma foice de prata, sorrindo para mim. À minha direita, outro sacerdote, coberto de peles animais, com uma crista de penas, solta as amarras de meu pulso direito com um machado de ferro. À minha esquerda, um homem alto, coberto dos pés à cabeça com uma túnica branca reluzente, parte as amarras do outro lado com um punhal de ouro. Ergo-me, e sozinho, arranco as fibras que prendem meus tornozelos feridos.

— Que a Luz mais uma vez guie teus passos, Gideon Ben-Leona Acebal, Rei do Jardim da Chama Celeste de Javé.

Ainda sinto náuseas, mas meu cérebro começa a funcionar no ritmo normal.

Sei onde estou.

Sei quem sou.

Sei o que faço.

“E plantou Javé um jardim no Éden, do lado oriental; e pôs ali o homem que tinha formado”, entoaram os sacerdotes em coro.

Estou pensando nela. Apenas nela.

— Onde está a Rainha? — senti minha voz tão forte que os clérigos estremeceram com o meu grito.

— Estou aqui, meu amor — reconheci a voz dela.

Seu pescoço estava ornado com uma grinalda de rosas tão vermelhas como seus cabelos cacheados. Ursula bath-Tamar Cordero, a Rainha do Jardim. Ela, assim como ele, tinha os cabelos ungidos com azeite bento.

Nós nos beijamos por um longo tempo, até ser interrompidos por um homem baixo de barba preta e áspera.

— As viajantes noditas já chegaram, ó Rei — aquele era Yordan ben-Leona, meu irmão. Ele nos guiou até o pomar de tangerinas, onde duas mulheres morenas nos aguardavam.

Aquele era o Jardim da Chama Celeste de Javé, uma comunidade agrícola situada numa escarpa montanhosa no Marrocos, onde todos levavam uma vida simples, baseada na agricultura, na criação de animais e na abolição de qualquer “modernidade” pecaminosa. Carpinteiros e ferreiros eram os únicos profissionais permitidos, pois assim ditava a regra dos Adâmicos. Em cada Jardim — aquele não era o único —, um casal era escolhido para se tornarem o Rei e a Rainha do povoado, e imbuídos do poder divino e alimentados por refeições sagradas que os tornavam incrivelmente vigorosos. Gideon era capaz de segurar um touro com as próprias mãos, e Ursula, não menos poderosa, era mais rápida que uma gazela. Todos os Adâmicos gozavam de uma saúde perfeita, e eram consideravelmente mais fortes que os humanos normais, ou como eles os chamavam pejorativamente, os “amigos da Serpente”.

As viajantes, que trajavam uma túnica rústica de lã, amarrada com cadarços de couro, se chamavam Eva bath-Águila Caballero e Tabatha bath-Sara Ovieja. As argolas de bronze nos pulsos e orelhas eram um adereço típico de sua função. As Noditas tinham a missão de viajar para além dos limites dos Jardins e estudar o mundo exterior, narrando o que presenciavam. Tiravam seu nome de Nod, a terra onde Caim se exilou.

— O Jardim da Alma Pura foi atacado — explicou Tabatha, com a voz trêmula. — Só dois sobreviveram.

—É a quinta comunidade a ser dizimada em dois meses! — gritou minha amada Ursula, com os olhos castanhos brilhando de fúria. — Ficaremos parados?

A origem dos Adâmicos era atribuída a judeus espanhóis expulsos da Península Ibérica no século XV, que se estabeleceram no norte da África, onde começaram a fundar comunidades agropastoris que abominavam qualquer um dos vícios da civilização urbana. Cultuavam os anjos Miguel, Gabriel e Haniel, e através do seu êxtase religioso, dotavam seus corpos de dons prodigiosos, que eram mais acentuados nos Reis e Rainhas, que eram tão poderosos, que precisavam passar uma espécie de hibernação a cada treze lunações, o que eles chamavam de a “Morte em Vida”. A língua de culto era uma forma modificada do judeu-ladino ibérico, e as principais famílias ainda traziam seus nomes de origem castelhana.

— Yoseph ben-Blanca Delmar era o Rei do Jardim da Alma Pura. Ele não conseguiu deter os ataques?

— Não, Rei Gideon, mas ele é um dos sobreviventes. Está cego e teve a perna esquerda amputada.

— Isso não é um problema, com leite e mel, ele rapidamente regenerará as mutilações — disse Ursula, com um certo desdém.

— A alimentação não está fazendo efeito, Rainha... — Eva retrucou com uma certa timidez.

— O quê?! — Ursula estava furiosa. — Que tipo de inimigo estamos enfrentando?

As noditas silenciaram. Estava claro que ninguém sabia o que estava atacando os Adâmicos. Deixei que elas se retirassem para seus aposentos, não havia nada mais a ser dito. Os casais reais dos Adâmicos não podiam deixar suas comunidades, e estavam obrigados a permanecer nelas e defendê-las. Isso nos tornava vulneráveis, já que não podíamos reunir vários de nós para ajudar os outros Jardins. É verdades que os aldeões adâmicos não estavam inteiramente indefesos, já que gozavam de uma saúde realmente sobre-humana. Mas mesmo este poderio incrível não foi capaz de protegê-los dos inimigos. O Jardim da Fidelidade, na Sicília, o Jardim do Fruto Bendito, na Espanha, e os Jardins da Glória de Adonai e da Nuvem dos Santos Anjos, no mesmo Marrocos, tinham sido invadidos por algum inimigo sobrenatural de absurdo poder. Corpos esmagados ou mutilados, casas demolidas, plantações incineradas ou congeladas, o que quer fosse o invasor, demonstrava um arsenal incrivelmente letal, mas não deixava nenhum vestígio. Os poucos sobreviventes não eram capazes de dar uma descrição exata do que acontecera.

Eu podia sentir por trás daquelas atrocidades a presença infernal da Serpente e seus consortes corruptos. Ursula com certeza pensava o mesmo que eu.

Este é o Jardim a que devemos proteger. É nossa missão. É nossa Vida.

O Demônio está próximo, nos espreitando com seu olhar oblíquo, contaminando o ar com seu hálito podre.

Ursula lança um olhar triste para mim. Eu a beijo com toda minha paixão imorredoura. A aflição dela é a minha. Nós, que somos os protetores do Paraíso, estamos nos sentindo desprotegidos.

Não sabemos o que fazer.

Que Haniel, Mikhael e Gabriel nos protejam.

O DESPERTAR DO REI foi escrito por Simões Lopes

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