Todos dizem que me pareço demais com meu pai, e sou forçado a acreditar, já que nunca o conheci. Poucos dias após meu nascimento, ele partiu para a guerra e jamais o vimos de novo.
Minha mãe sempre me contava que no dia em que um soldado maltrapilho chegou ao vilarejo para trazer a nefasta notícia da morte de papai, um temporal desabou sobre o vale, enchendo o leito do rio e inundando os cafezais com uma torrente de lama preta. Coriscos cortaram o céu cor de chumbo, e uma chuva de granizo muito forte destruiu a cruz de madeira da capelinha de São Jorge. Na carta trazida pelo cadete estavam escritas as últimas palavras de papai, em uma singela frase, “A guerra vai durar, mas vocês não estarão indefesos”.
Eu já tinha quatro anos de idade, e as lembranças daquele dia sombrio ficaram gravadas em minha memória como uma espécie de filme. Minha mãe carregava-me nos braços, tentando chegar em casa, e usava um cesto de palha muito grande para proteger-me das pedras de gelo que caíam. Ao tentar atravessar o riacho esquálido que cortava o laranjal, mamãe tropeçou num galho e escorregou por um barranco e acabou me largando. Por um breve momento, senti-me voando no espaço, rodopiando como uma folha seca, até afundar nas águas barrentas de um charco que se formara na terra barrenta. Na tentativa desesperada de respirar, agitei os braços, mas não via mais nada ao meu redor. Não havia “acima” ou “embaixo”, e senti o gosto desagradável da água suja ardendo em meu nariz.
Tudo pareceu sumir numa grande mancha escura.
Minha mãe disse que eu sumi por mais de um minuto.
Quando abri os olhos, estava estirado na grama, com uma língua morna lambendo meu rosto. Foi nesse dia em que conheci Buridan.
Um canzarrão enorme, com a boca entreaberta mostrando as enormes presas amareladas. O pêlo branco e lustroso parecia cintilar sob a luz do lua, que aparecia timidamente por trás das nuvens. Tão rápido quanto começara, a tempestade estava se dissipando. O luar refletido nas manchas d’água parecia emoldurar a figura impressionante daquele cachorro de talhe gigantesco.
Numa espécie de gratidão imediata, minha mãe acaricia os pelos da nuca do animal, e eu sentia seus olhos vermelhos fixos em mim, emanando uma aura de calma e proteção. Quando voltamos para casa, eu passei a noite inteira na janela espiando. Ele postou-se à frente de nossa casa, e ficou ali, imóvel, impávido, como se nos guardasse.
O tempo foi passando e fui aprendendo as coisas do mundo. Entendi que meu pai não tivera um enterro porque nada restara de seu cadáver, despedaçado em uma explosão. Descobri que meu pai guardava uma pequena coleção de livros velhos de histórias de cavalaria e aventura, literalmente “mergulhei” naquele universo de fantasia. Quanto ao cachorrão, ele jamais foi embora, e acabamos por adotá-lo, embora eu desconfie que o mais correto seria dizer que ele é quem nos adotou. Desde os quatro anos, eu chamava-o simplesmente de “Todobranco”, mas quando já sentia os primeiros fios de bigode a coçar-me o beiço, decidiu rebatizá-lo de “Buridan”, do nome de um personagem de um dos livrinhos de meu pai. Deixei a vila para estudar, e quando voltei, muito tempo depois, para encontrar minha mãe em seu leito de morte, eu já era um erudito professor. Buridan continuava lá, impávido, com seus dentes enormes desenhando o que eu sempre entendia como espécie de sorriso.
Sem família, e sem maiores ambições na vida, fiquei no povoado, lecionando e, nas horas vagas, trancado em minha humilde biblioteca, a qual tive o cuidado de aumentar. Não casei nem tive filhos, e Buridan era a minha única companhia. Às vezes pensava em meus falecidos pais, e por vezes, ousava pensar na estranha morte de meu pai. Que guerra era aquela? Nosso país não tomara parte em nenhuma guerra, interna ou externa. Nenhuma revolução. Nenhum conflito civil. Com o passar do tempo, isto acabou não tendo importância. O quer que tivesse acontecido, estava enterrado num passado distante. Meus cabelos perderam o viço, e começaram a cair, e minha pele tornou-se seca e quebradiça. Era a velhice cobrando seu preço, e a meu redor via tudo definhando. A coleção de meu pai estava ficando em frangalhos, os livros amarelados reduzindo-se a pó; a casa, vítima de meu pouco zelo doméstico, era suja e deteriorada.
Apenas Buridan não mudava. Mesmo com muitas décadas de idade — algo incomum para sua espécie —, ele permanecia o mesmo mastim de olhar brilhante, altivo, com o latido alto a ecoar pelas noites frias. Aposentado, com a vista cada vez mais embaçada, passei a visitar a capela de São Jorge. Uma construção simples, de pedra, com detalhes em madeira sólida, onde minha mãe passara tantas manhãs rezando e chorando, enquanto esperava pelo retorno do marido. Não era muito antiga: na verdade, descobri, para minha surpresa, que havia sido construída uns oitenta anos antes pelo meu avô, um pedreiro caolho, cuja força prodigiosa tornara-se uma lenda no povoado. O frei responsável pela capela havia morrido há muito tempo atrás — acho que mais ou menos na mesma época que meu pai, e como nenhum substituto fora posto em seu lugar, a igrejinha dependia dos cuidados esporádicos de uns poucos beatos.
Eu entro na capela benzendo-me, num gesto meio automático que aprendi com minha finada mãe. Ajoelho-me, mais por cansaço do que por devoção, e fecho os olhos, como se buscasse um momento de relaxamento. O som de passos desperta-me de meu transe reparador.
As velas acesas lançam manchas avermelhadas nas paredes de rocha. Não me recordo de tê-las acendido, mas não tenho tempo para pensar mais no assunto. Duas silhuetas altas estão parada junto às portas de ferro. Os cabelos são loiros, e balbuciam algo ríspido numa língua estrangeira. Pode ser alemão ou algum dialeto holandês. Não importa. Um dos estrangeiros é gordo, e seu rosto enrugado é coberto por cicatrizes profundas. Ele chuta o primeiro banco, rachando-o ao meio, enquanto que o segundo, mais magro, com uma barba espessa emoldurando o queixo pontudo, saca uma espécie de punhal comprido do bolso.
Eu penso em gritar, mas não consigo emitir som algum. Meus pulmões parece estar sendo privados de sua força, e um pontapé me atinge em cheio na coxa direita. Bato com a cabeça no altar, e vejo os dois invasores dirigirem sua atenção à imagem tosca de São Jorge que decora a parede central. O velho robusto expõe os dentes numa espécie de careta, rangendo como uma dobradiça gasta. Seus olhos tornam-se negros e vazios, e percebo que seu companheiro movimenta os braços numa espécie de balé misterioso. A imagem é derrubada com violência, e uma labareda sai do punhal, derretendo a imagem de cavalo e expondo alguns objetos em seu interior. O homem abaixa-se com os dentes abertos numa risada sinistra, e enfia a mão naquela massa disforme em que a cerâmica derretida transformara-se, puxando uma espécie de crucifixo pesado de metal esverdeado, com um cordão de contas de alguma substância brilhosa. Os dois conversam algo que eu não compreendo, e brandem o objeto como uma espécie de troféu. O louro de ar esquálido estica a língua, que se estende num comprimento inumando, e baba uma espessa gosma sangrenta no altar, traçando com a unha uma espécie de sinal demoníaco no chão.
As chamas das velas bruxuleiam pelas paredes, lançando um restolho de luz pelo cenário sombrio. Eles então sorriem mais uma vez, agora em minha direção, e aproximam-se. Com uma força incomum, sou erguido do chão pelos braços magros do bruxo, e sinto seu hálito sulfuroso provocar-me engulhos. O bandido sopra nas velas, apagando-as, e mergulhando a capela numa escuridão quase completa.
A vela central, no castiçal maior, tremula, e insiste em ficar acesa. O outro homem cospe no chão, como se tentasse conspurca a santidade da capela, e balbucia uma frase num tom desagradavelmente fino.
Com os dedos enluvados, ele extingue a última chama, e a escuridão reina absoluta.
Mas apenas por um breve momento.
A vela que parecia apagada, torna a se acender, desta vez em uma labareda tão intensa e luminosa que incendeia o mais velho dos hereges. Um turbilhão de vento invade a igreja derrubando o seu companheiro, e lançando-o contra a fileira de bancos, num choque tão violento que escuto os ossos se partindo.
O homem de traços nórdicos ainda insiste em levantar-se, apesar da nítida fratura exposta em seu cotovelo. Seus olhos vazios fitam-me com um ardor demoníaco, iluminados pela chama central que arde no meio da igreja. Ele continua rindo.
Um uivo corta a noite, fazendo meus ouvidos doerem.
Sem compreender o que está acontecendo, eu cerro minha vista, e vejo Buridan em cima do altar.
O pêlo branco refulgindo em um brilho sobrenatural.
Seus olhos são duas enormes labaredas, e neste momento percebo que todas as velas incendeiam-se ao mesmo tempo.
O bruxo arremessa um punhal no cachorro, e ensaia uma fuga pela escada em caracol que leva à torre do sino. Buridan permanece imóvel. Limita-se a cuspir uma bola de fogo, derretendo a arma em pleno ar, e flexiona as pernas musculosas, com o olhar fixo no inimigo.
O pulo é tão rápido que não posso descrever a cena que se seguiu. Só ouvi os gritos animalescos do homem, e o medonho som de um corpo sendo despedaçado, antes de perder os sentidos.
Acordei em minha cama, sem saber quantos dias tinham se passado desde tudo aquilo, e nem me preocupei em descobrir. Não sei como meus ferimentos foram curados, e também não quero saber quem fez isso. Sinto que deve existir alguma ligação entre tantos eventos misteriosos: a morte de meu pai, a guerra da qual fez parte, os dois invasores, a tempestade e, naturalmente, o surgimento de Buridan. Mas estou velho demais para buscar a solução de enigmas que não serão de nenhuma serventia para este pobre professor aposentado em um povoado esquecido no fim do mundo.
Nunca mais fitei os seus olhos flamejantes, mas, às vezes tenho a sensação de ouvir seu uivo ecoando pelo vale, nas noites tristes e insones.
Sinto que ele continuará por perto, zelando por mim.
Minha saúde está péssima, meu corpo definha com rapidez, e minhas memórias estão cada vez mais confusas. Tenho quase noventa anos e estou próximo do fim.
Rezo todos dias a São Jorge para que meu fim chegue logo, e que assim, o meu querido protetor, o invencível Buridan, tenha também seu descanso merecido.
Minha mãe sempre me contava que no dia em que um soldado maltrapilho chegou ao vilarejo para trazer a nefasta notícia da morte de papai, um temporal desabou sobre o vale, enchendo o leito do rio e inundando os cafezais com uma torrente de lama preta. Coriscos cortaram o céu cor de chumbo, e uma chuva de granizo muito forte destruiu a cruz de madeira da capelinha de São Jorge. Na carta trazida pelo cadete estavam escritas as últimas palavras de papai, em uma singela frase, “A guerra vai durar, mas vocês não estarão indefesos”.
Eu já tinha quatro anos de idade, e as lembranças daquele dia sombrio ficaram gravadas em minha memória como uma espécie de filme. Minha mãe carregava-me nos braços, tentando chegar em casa, e usava um cesto de palha muito grande para proteger-me das pedras de gelo que caíam. Ao tentar atravessar o riacho esquálido que cortava o laranjal, mamãe tropeçou num galho e escorregou por um barranco e acabou me largando. Por um breve momento, senti-me voando no espaço, rodopiando como uma folha seca, até afundar nas águas barrentas de um charco que se formara na terra barrenta. Na tentativa desesperada de respirar, agitei os braços, mas não via mais nada ao meu redor. Não havia “acima” ou “embaixo”, e senti o gosto desagradável da água suja ardendo em meu nariz.
Tudo pareceu sumir numa grande mancha escura.
Minha mãe disse que eu sumi por mais de um minuto.
Quando abri os olhos, estava estirado na grama, com uma língua morna lambendo meu rosto. Foi nesse dia em que conheci Buridan.
Um canzarrão enorme, com a boca entreaberta mostrando as enormes presas amareladas. O pêlo branco e lustroso parecia cintilar sob a luz do lua, que aparecia timidamente por trás das nuvens. Tão rápido quanto começara, a tempestade estava se dissipando. O luar refletido nas manchas d’água parecia emoldurar a figura impressionante daquele cachorro de talhe gigantesco.
Numa espécie de gratidão imediata, minha mãe acaricia os pelos da nuca do animal, e eu sentia seus olhos vermelhos fixos em mim, emanando uma aura de calma e proteção. Quando voltamos para casa, eu passei a noite inteira na janela espiando. Ele postou-se à frente de nossa casa, e ficou ali, imóvel, impávido, como se nos guardasse.
O tempo foi passando e fui aprendendo as coisas do mundo. Entendi que meu pai não tivera um enterro porque nada restara de seu cadáver, despedaçado em uma explosão. Descobri que meu pai guardava uma pequena coleção de livros velhos de histórias de cavalaria e aventura, literalmente “mergulhei” naquele universo de fantasia. Quanto ao cachorrão, ele jamais foi embora, e acabamos por adotá-lo, embora eu desconfie que o mais correto seria dizer que ele é quem nos adotou. Desde os quatro anos, eu chamava-o simplesmente de “Todobranco”, mas quando já sentia os primeiros fios de bigode a coçar-me o beiço, decidiu rebatizá-lo de “Buridan”, do nome de um personagem de um dos livrinhos de meu pai. Deixei a vila para estudar, e quando voltei, muito tempo depois, para encontrar minha mãe em seu leito de morte, eu já era um erudito professor. Buridan continuava lá, impávido, com seus dentes enormes desenhando o que eu sempre entendia como espécie de sorriso.
Sem família, e sem maiores ambições na vida, fiquei no povoado, lecionando e, nas horas vagas, trancado em minha humilde biblioteca, a qual tive o cuidado de aumentar. Não casei nem tive filhos, e Buridan era a minha única companhia. Às vezes pensava em meus falecidos pais, e por vezes, ousava pensar na estranha morte de meu pai. Que guerra era aquela? Nosso país não tomara parte em nenhuma guerra, interna ou externa. Nenhuma revolução. Nenhum conflito civil. Com o passar do tempo, isto acabou não tendo importância. O quer que tivesse acontecido, estava enterrado num passado distante. Meus cabelos perderam o viço, e começaram a cair, e minha pele tornou-se seca e quebradiça. Era a velhice cobrando seu preço, e a meu redor via tudo definhando. A coleção de meu pai estava ficando em frangalhos, os livros amarelados reduzindo-se a pó; a casa, vítima de meu pouco zelo doméstico, era suja e deteriorada.
Apenas Buridan não mudava. Mesmo com muitas décadas de idade — algo incomum para sua espécie —, ele permanecia o mesmo mastim de olhar brilhante, altivo, com o latido alto a ecoar pelas noites frias. Aposentado, com a vista cada vez mais embaçada, passei a visitar a capela de São Jorge. Uma construção simples, de pedra, com detalhes em madeira sólida, onde minha mãe passara tantas manhãs rezando e chorando, enquanto esperava pelo retorno do marido. Não era muito antiga: na verdade, descobri, para minha surpresa, que havia sido construída uns oitenta anos antes pelo meu avô, um pedreiro caolho, cuja força prodigiosa tornara-se uma lenda no povoado. O frei responsável pela capela havia morrido há muito tempo atrás — acho que mais ou menos na mesma época que meu pai, e como nenhum substituto fora posto em seu lugar, a igrejinha dependia dos cuidados esporádicos de uns poucos beatos.
Eu entro na capela benzendo-me, num gesto meio automático que aprendi com minha finada mãe. Ajoelho-me, mais por cansaço do que por devoção, e fecho os olhos, como se buscasse um momento de relaxamento. O som de passos desperta-me de meu transe reparador.
As velas acesas lançam manchas avermelhadas nas paredes de rocha. Não me recordo de tê-las acendido, mas não tenho tempo para pensar mais no assunto. Duas silhuetas altas estão parada junto às portas de ferro. Os cabelos são loiros, e balbuciam algo ríspido numa língua estrangeira. Pode ser alemão ou algum dialeto holandês. Não importa. Um dos estrangeiros é gordo, e seu rosto enrugado é coberto por cicatrizes profundas. Ele chuta o primeiro banco, rachando-o ao meio, enquanto que o segundo, mais magro, com uma barba espessa emoldurando o queixo pontudo, saca uma espécie de punhal comprido do bolso.
Eu penso em gritar, mas não consigo emitir som algum. Meus pulmões parece estar sendo privados de sua força, e um pontapé me atinge em cheio na coxa direita. Bato com a cabeça no altar, e vejo os dois invasores dirigirem sua atenção à imagem tosca de São Jorge que decora a parede central. O velho robusto expõe os dentes numa espécie de careta, rangendo como uma dobradiça gasta. Seus olhos tornam-se negros e vazios, e percebo que seu companheiro movimenta os braços numa espécie de balé misterioso. A imagem é derrubada com violência, e uma labareda sai do punhal, derretendo a imagem de cavalo e expondo alguns objetos em seu interior. O homem abaixa-se com os dentes abertos numa risada sinistra, e enfia a mão naquela massa disforme em que a cerâmica derretida transformara-se, puxando uma espécie de crucifixo pesado de metal esverdeado, com um cordão de contas de alguma substância brilhosa. Os dois conversam algo que eu não compreendo, e brandem o objeto como uma espécie de troféu. O louro de ar esquálido estica a língua, que se estende num comprimento inumando, e baba uma espessa gosma sangrenta no altar, traçando com a unha uma espécie de sinal demoníaco no chão.
As chamas das velas bruxuleiam pelas paredes, lançando um restolho de luz pelo cenário sombrio. Eles então sorriem mais uma vez, agora em minha direção, e aproximam-se. Com uma força incomum, sou erguido do chão pelos braços magros do bruxo, e sinto seu hálito sulfuroso provocar-me engulhos. O bandido sopra nas velas, apagando-as, e mergulhando a capela numa escuridão quase completa.
A vela central, no castiçal maior, tremula, e insiste em ficar acesa. O outro homem cospe no chão, como se tentasse conspurca a santidade da capela, e balbucia uma frase num tom desagradavelmente fino.
Com os dedos enluvados, ele extingue a última chama, e a escuridão reina absoluta.
Mas apenas por um breve momento.
A vela que parecia apagada, torna a se acender, desta vez em uma labareda tão intensa e luminosa que incendeia o mais velho dos hereges. Um turbilhão de vento invade a igreja derrubando o seu companheiro, e lançando-o contra a fileira de bancos, num choque tão violento que escuto os ossos se partindo.
O homem de traços nórdicos ainda insiste em levantar-se, apesar da nítida fratura exposta em seu cotovelo. Seus olhos vazios fitam-me com um ardor demoníaco, iluminados pela chama central que arde no meio da igreja. Ele continua rindo.
Um uivo corta a noite, fazendo meus ouvidos doerem.
Sem compreender o que está acontecendo, eu cerro minha vista, e vejo Buridan em cima do altar.
O pêlo branco refulgindo em um brilho sobrenatural.
Seus olhos são duas enormes labaredas, e neste momento percebo que todas as velas incendeiam-se ao mesmo tempo.
O bruxo arremessa um punhal no cachorro, e ensaia uma fuga pela escada em caracol que leva à torre do sino. Buridan permanece imóvel. Limita-se a cuspir uma bola de fogo, derretendo a arma em pleno ar, e flexiona as pernas musculosas, com o olhar fixo no inimigo.
O pulo é tão rápido que não posso descrever a cena que se seguiu. Só ouvi os gritos animalescos do homem, e o medonho som de um corpo sendo despedaçado, antes de perder os sentidos.
Acordei em minha cama, sem saber quantos dias tinham se passado desde tudo aquilo, e nem me preocupei em descobrir. Não sei como meus ferimentos foram curados, e também não quero saber quem fez isso. Sinto que deve existir alguma ligação entre tantos eventos misteriosos: a morte de meu pai, a guerra da qual fez parte, os dois invasores, a tempestade e, naturalmente, o surgimento de Buridan. Mas estou velho demais para buscar a solução de enigmas que não serão de nenhuma serventia para este pobre professor aposentado em um povoado esquecido no fim do mundo.
Nunca mais fitei os seus olhos flamejantes, mas, às vezes tenho a sensação de ouvir seu uivo ecoando pelo vale, nas noites tristes e insones.
Sinto que ele continuará por perto, zelando por mim.
Minha saúde está péssima, meu corpo definha com rapidez, e minhas memórias estão cada vez mais confusas. Tenho quase noventa anos e estou próximo do fim.
Rezo todos dias a São Jorge para que meu fim chegue logo, e que assim, o meu querido protetor, o invencível Buridan, tenha também seu descanso merecido.
FIDELIDADE CANINA foi escrito por Simões Lopes
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