domingo, 2 de dezembro de 2007

Rebelião 3: Gula



O anel em sua mão esquerda é de ouro branco, e sua face continha uma opala polida, com uma cruz argêntea engastada sobre ela - seus quatro braços terminavam em setas, apontando assim o norte, sul, leste e oeste ao mesmo tempo, representando equilíbrio de caráter. Sua base era levemente maior que os outros braços, mostrando uma tradição sólida e inquebrantável. A própria opala tinha um significado - era a noite, fria noite escondida nas asas de seus pais...


Ele caminhava com a graça e a beleza de uma pantera espreitando. Suas roupas eram feitas sob medida, e negras como sua pele. Usava os cabelos raspados, e no seu rosto nada chamava a atenção, a não ser o verde profundo de seus olhos, que atraiam o olhar de todos que a ele se dirigiam. Uma vez capturada por aquele olhar, qualquer vontade fraquejava. O rapaz caminhando atrás dele vinha bem vestido, com um bonito terno cinzento. Ele também tinha um anel em sua mão esquerda, representando seu matrimônio com a augusta confraria dos Precursores. Desde que fora entregue ao seu preceptor, dois anos atrás, Flávio prosperou como jamais sonhara - recolhido da imundice das ruas, foi lavado da sujeira e da mediocridade por seus irmãos maiores. Foi tratado com igualdade, e quem antes se desprezava, aprendeu a respeitar a pureza de seu sangue e de sua ascendência. E o poder...


Alfonsus senta-se em sua confortável cadeira, à cabeceira de uma mesa de carvalho sólido, cuja idade supera a do próprio Aurélius, O Primus. Flávio senta-se à sua esquerda, e a um pedido do cavalheiro que o presi-de, liga os monitores. A parede diretamente a frente de Alfonsus brilha e emite imagens dispares de ambientes diversos, pessoas se drogando, copulando, se matando. Numa das imagens, homens e mulheres bem vestidos apostam com galantaria enquanto dois homens se digladiam num ringue manchado de sangue.
- Aqueles que vão morrer te saúdam - diz Alfonsus ao seu discípulo, no sorriso suave em que a pan-tera mostra seus dentes alvos e mortais às suas presas. Os mais terríveis opiários de Hong Kong, as mais devas-sas fossas de Sodoma se fechariam à visão do que entretêm os nobres Precursores. Com um suspiro contido de enfado, Alfonsus fala:
- Estes homens e mulheres estão consumindo o que lhes ofereço, e eu só ofereço o que lhes sacia. Prazer, prazer pela dor, prazer pelo vício, pelo amor... - neste momento, um sorriso de maior interesse esboça-se mais em seus olhos que em seus lábios - não, certamente não pelo amor. Mas, de qualquer forma, sou infini-tamente complacente com suas fraquezas. Entretanto, não provo de nada do que lhes ofereço. Sigo intocado pelos prazeres simples do consumismo, apenas observando... por que, Flávio? O que me sacia?
Ele observa a face do jovem se contrair em pensamento, sua imagem manchada pelos fantasmas colori-dos projetados pelas telas. Por fim, ele responde:
- Eles. Enquanto consomem o que lhes oferece, o senhor os consome, avidamente, sem comedimentos, pois sabe que eles continuaram a vir em massa, um após o outro...


A pantera novamente exibe seus dentes num ronronar gutural, que tanto pode ser um sorriso de aprova-ção quanto o prenúncio do rugido. Eles voltam sua atenção para os monitores - um influente político, com uma expressão abobada de admiração suína, ajoelha-se aos pés de uma voluptuosa cortesã, cuja fantasia de couro insinua demais e esconde pouco.
"Promissor, meu jovem irmão. Devo tomar conta dele."
E os predadores continuam espreitando.

GULA foi escrito por Renato Simões

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